Uma nota divulgada pela Congregação para a Doutrina da Fé nesta segunda-feira, 21 de dezembro de 2020, traz posicionamentos e esclarecimentos sobre as vacinas anti-Covid-19. O documento, aprovado pelo Papa Francisco, aborda alguns pontos que ganharam repercussão recente na mídia.
A polêmica do aborto
O documento começa mencionando que “Nos últimos meses, a Congregação [para a Doutrina da Fé] tem recebido diversos pedidos de uma opinião sobre o uso de algumas vacinas contra o vírus SARS-CoV-2, causador da Covid-19, desenvolvidas utilizando, no processo de pesquisa e produção, linhas celulares que vêm de tecidos obtidos de dois abortos ocorridos no século passado. Ao mesmo tempo, foram divulgadas diversas declarações na mídia por parte de bispos, associações católicas e especialistas, diferentes entre si e às vezes contraditórias, que também levantam dúvidas sobre a moralidade do uso dessas vacinas”.
A nota da Congregação usou como base dois documentos importantes para a reflexão sobre o tema: um pronunciamento da Pontifícia Academia para a Vida [1]: leia aqui em inglês. E uma nota da própria Congregação para a Doutrina da Fé sobre a Dignidade da Pessoa [2]: leia aqui. Além disso, em 2017, a Pontifícia Academia para a Vida voltou a abordar o tema com uma Nota. Esses documentos ofereceram alguns critérios gerais decisivos para a atual orientação publicada.
Qual o objetivo desta nota?
A Congregação esclarece: “Dado que as primeiras vacinas contra Covid-19 já estão disponíveis para distribuição e administração em vários países, esta Congregação deseja oferecer algumas indicações que esclareçam este tema. Não se pretende julgar a segurança e eficácia dessas vacinas, embora isso seja eticamente relevante e necessário, pois sua avaliação é de responsabilidade de pesquisadores biomédicos e agências de medicamentos, mas unicamente refletir sobre o aspecto moral do uso dessas vacinas contra Covid-19 que foram desenvolvidas com linhagens celulares procedentes de tecidos obtidos de dois fetos abortados não espontaneamente”.
O que diz a Igreja?
Esses são os pontos destacados no documento da Congregação para a Doutrina da Fé, sobre as vacinas, publicado hoje:
1. Conforme declarado na Instrução Dignitas Personae, nos casos em que são utilizadas células de fetos abortados para criar linhagens celulares para uso em pesquisas científicas, “existem diferentes graus de responsabilidade” na cooperação com o mal. Por exemplo, “nas empresas que utilizam linhas celulares de origem ilícita, não é a mesma a responsabilidade dos que decidem a orientação da produção e a dos que não têm nenhum poder de decisão”.
2. Nesse sentido, quando não estão disponíveis vacinas anti-Covid-19 eticamente irreprováveis (por exemplo, em países onde as vacinas sem problemas éticos não estão disponíveis para médicos e pacientes, ou onde sua distribuição é mais difícil devido a condições especiais de armazenamento e transporte, ou quando vários tipos de vacinas são distribuídas no mesmo país, mas, pelas autoridades de saúde, os cidadãos não podem escolher a vacina a ser inoculada) é moralmente aceitável usar as vacinas contra o Covid-19 que utilizaram linhagens celulares de fetos abortados em seu processo de pesquisa e produção.
3. A razão fundamental para considerar o uso dessas vacinas moralmente lícito é que o tipo de cooperação para o mal (cooperação material passiva) de aborto induzido de que provêm essas mesmas linhagens celulares, por parte de quem usa as vacinas resultantes, é remoto. O dever moral de evitar essa cooperação material passiva não é vinculante se existe um perigo grave, como a disseminação, de outra forma impossível de conter, de um patógeno grave: neste caso, a disseminação pandêmica do vírus SARS-CoV-2 que causa Covid-19. Portanto, deve-se considerar que, neste caso, todas as vacinas reconhecidas como clinicamente seguras e eficazes podem ser utilizadas com a certeza de que o uso de tais vacinas não significa uma cooperação formal com o aborto de onde foram obtidas as células com as quais foram produzidas as vacinas. No entanto, deve-se ressaltar que o uso moralmente lícito desse tipo de vacina, pelas condições especiais que o tornam possível, não pode constituir por si só uma legitimação, mesmo que indireta, da prática do aborto, e pressupõe oposição a esta prática por parte de quem recorre a essas vacinas.
4. Na verdade, o uso lícito dessas vacinas não implica, nem deve implicar de forma alguma, a aprovação moral do uso de linhagens celulares procedentes de fetos abortados. Portanto, pede-se tanto às empresas farmacêuticas quanto às agências governamentais de saúde, que produzam, aprovem, distribuam e ofereçam vacinas eticamente aceitáveis, que não criem problemas de consciência, nem para os profissionais da saúde nem para os próprios vacinados.
5. Ao mesmo tempo, é evidente por razões práticas que a vacinação não é, por regra geral, uma obrigação moral e que, portanto, a vacinação deve ser voluntária. Em qualquer caso, do ponto de vista ético, a moralidade da vacinação depende não só do dever de proteger a própria saúde, mas também do dever de buscar o bem comum. Bem que, na ausência de outros meios para deter ou mesmo prevenir a epidemia, pode tornar a vacinação recomendada, especialmente para proteger os mais frágeis e mais expostos. Contudo, aqueles que, por motivo de consciência, rejeitam vacinas produzidas a partir de linhagens celulares de fetos abortados, devem adotar medidas, por outros meios profiláticos e com comportamento adequado, para evitar de tornarem-se veículos de transmissão do agente infeccioso. Em particular, devem evitar qualquer risco para a saúde daqueles que não podem ser vacinados por razões médicas ou outras e que são os mais vulneráveis.
6. Por último, existe também um imperativo moral para a indústria farmacêutica, os governos e as organizações internacionais: garantir que as vacinas, eficazes e seguras do ponto de vista da saúde, e eticamente aceitáveis, também sejam acessíveis aos países mais pobres e sem um custo excessivo para eles. A falta de acesso às vacinas se converteria, de algum modo, em outra forma de discriminação e injustiça que condenaria os países pobres a continuar vivendo em indigência sanitária, econômica e social.
Você encontra a nota, na íntegra (em espanhol, inglês e italiano), neste link.
[1] Título do texto “Reflexões morais sobre as vacinas preparadas a partir de células procedentes de fetos humanos abortados”, de 5 de junho de 2005.
[2] Instrução Dignitas Personae, de 8 de setembro de 2008