Refletindo sobre Amoris Laetitia – 1ª parte sobre a realidade e os desafios
Flávia Nunes Costa Ghelardi – Refletiremos hoje sobre o segundo capítulo da exortação apostólica Amoris Laetitia, onde o Santo Padre elenca alguns desafios enfrentados pela família contemporânea. Como o capítulo é longo, dividiremos essa análise em dois artigos e incluiremos algumas sugestões, ensinadas pelo Pe. José Kentenich, para enfrentarmos esses problemas.
O Papa começa afirmando que “o bem da família é decisivo para o futuro do mundo e da Igreja” (AL 31), pelo que é necessário analisar alguns aspectos da vida familiar para que seja possível ajudar as famílias a cumprirem a sua missão de serem célula básica da sociedade. Nosso Pai e Fundador também nos exorta a “salvar a família, custe o que custar!”
O primeiro desafio apontado é o individualismo exagerado, pelo qual cada membro da família está mais preocupado com os seus próprios interesses e com seus direitos, podendo gerar uma dinâmica de impaciência e agressividade. Por causa dessa mentalidade individualista, a família “pode transformar-se num lugar de passagem, aonde uma pessoa vai quando lhe parecer conveniente para si mesma ou para reclamar direitos, enquanto os vínculos são deixados à precariedade volúvel dos desejos e das circunstâncias. No fundo, hoje é fácil confundir a liberdade genuína com a ideia de que cada um julga como lhe parece, como se, para além dos indivíduos, não houvesse verdades, valores, princípios que nos guiam, como se tudo fosse igual e tudo se devesse permitir”. (AL 34) O ideal do matrimônio acaba destruído pelos caprichos e vontades de cada cônjuge.
Assim, como cristãos, não devemos querer impor apenas as normas da Igreja, mas temos o desafio de “apresentar as razões e os motivos para se optar pelo matrimônio e a família, de modo que as pessoas estejam mais bem preparadas para responder à graça que Deus lhes oferece” (AL 35). Neste ponto, o Papa Francisco faz uma autocrítica, como Igreja, da forma que muitas vezes se apresenta o matrimônio: como um fardo que precisa ser carregado até o fim da vida; ou enfatizando muito mais o aspecto da finalidade de procriação, do que o valor unitivo do ato conjugal; ou ainda apresentando um ideal matrimonial muito abstrato, sem cuidar da vida prática e de um acompanhamento mais próximo dos jovens casais.
Outro desafio é a “cultura do provisório”, pela qual as pessoas trocam de relacionamento muito rapidamente, tratando o outro como se fosse “descartável”. “Creem que o amor, como acontece nas redes sociais, se possa conectar ou desconectar ao gosto do consumidor e inclusive bloquear rapidamente. Penso também no medo que desperta a perspectiva dum compromisso permanente, na obsessão pelo tempo livre, nas relações que medem custos e benefícios e mantêm-se apenas se forem um meio para remediar a solidão, ter proteção ou receber algum serviço” (AL 39). Nesse ponto o Papa destaca que essa mentalidade narcisista influencia muitos casais de meia-idade, que buscam um tipo de “autonomia” e liberdade, rejeitando a ideia de envelhecerem juntos.
O Santo Padre nos exorta a encontrar “as palavras, as motivações e os testemunhos que nos ajudem a tocar as cordas mais íntimas dos jovens, onde são mais capazes de generosidade, de compromisso, de amor e até mesmo de heroísmo, para convidá-los a aceitar, com entusiasmo e coragem, o desafio de matrimônio” (AL 40)
Mais um desafio é a imposição da afetividade sem qualquer limitação, que não ajuda as pessoas a atingirem a maturidade, pois ficam escravas dos próprios instintos. Além disso, a difusão da pornografia, facilitada pela internet, distorce o significado do ato conjugal, criando ilusões, tornando os casais inseguros, além de poder gerar um vício difícil de ser combatido. “Muitos são aqueles que tendem a ficar nos estádios primários da vida emocional e sexual. A crise do casal desestabiliza a família e pode chegar, através das separações e dos divórcios, a ter sérias consequências para os adultos, os filhos e a sociedade, enfraquecendo o indivíduo e os laços sociais”. (AL 41)
Um aspecto importante destacado pelo Papa Francisco é que muitas vezes as crises conjugais são tratadas “de modo apressado e sem a coragem da paciência, da averiguação, do perdão recíproco, da reconciliação e até do sacrifício. Deste modo os falimentos dão origem a novas relações, novos casais, novas uniões e novos casamentos, criando situações familiares complexas e problemáticas para a opção cristã.” (AL 41) Assim é urgente que os casais em crise recebam a ajuda apropriada por parte da comunidade, para conseguir enfrentar e vencer os problemas e não optarem pela dissolução do vínculo conjugal.
A mentalidade antinatalista na qual está submersa nossa sociedade é um grande perigo, pois ameaça a sucessão das gerações, podendo causar um empobrecimento e a perda da esperança no futuro. Por isso, “a Igreja rejeita com todas as suas forças as intervenções coercitivas do Estado a favor da contracepção, da esterilização e até mesmo do aborto.” (AL 42)
Mais algumas questões são abordadas neste capítulo, como o enfraquecimento da fé e da prática religiosa, que produz uma solidão, fruto dessa ausência de Deus em suas vidas; a falta de uma habitação digna ou adequada, que pode adiar a decisão por formalizar uma união; a doença de um ente querido sem acesso a serviços de saúde adequados; a problemas com o trabalho, seja pela escassez de oferta ou pelas longas jornadas, dificultando que os esposos se encontrem e passem mais tempo com os filhos.
Nesse ponto é interessante notar que o Pe. José Kentenich, na década de 1930, deu uma série de conferências que foram reunidas sob o título “Pedagogia Mariana do Matrimônio”. Nesse livro ele já elencava esses mesmos problemas da falta de moradia e de trabalho, entre outros. Em suas palestras, Pe. Kentenich orienta como podemos ajudar a combater essas crises na mesma linha daquilo que também é sugerido pelo Papa Francisco: demonstrar compreensão para com os casos particulares e despertar um movimento em favor do matrimônio católico.
“Na vida prática, ao tratarmos casos especiais, devemos agir com compreensão, amor e compaixão verdadeiramente sinceros. ‘Tenho compaixão do povo!’ (Mt 15,32) Queremos ter clareza: quem hoje, como pai e mãe, quiser manter elevado o ideal do matrimônio, deve viver santamente. Se quisermos educar nosso povo, cumpre educar casais santos. Precisamos fazê-lo desde a escola, desde o berço. Devemos adquirir profunda compreensão da vida matrimonial e criar a capacidade para, mais tarde, abraçar os sacrifícios deste estado de vida. Não será capaz disso quem não se decidir conscientemente pela santidade.” (P. Kentenich, Pedagogia Mariana do Matrimônio, 5ª conferência)
Para refletir:
1. Como posso combater o individualismo dentro da minha família? Como posso desenvolver e estimular uma sadia vinculação entre os membros da minha família, tanto entre nós mesmos, como com Deus e com o lar?
2. Dos outros problemas destacados nesse artigo, quais mais profundamente sinto pesar sobre minha família? Quais deles sinto que sou chamado por Deus para ajudar a combater? Como posso fazer isso?
3. O Pe. Kentenich indica a busca da santidade como meio mais eficaz para combater as crises no matrimônio. Tenho consciência que preciso buscar viver santamente no meu dia a dia? Conheço e utilizo os meios fornecidos por Schoenstatt (Ideal Pessoal, Exame Particular, Meditação da vida diária) para seguir no caminho rumo à santidade?