Pe. Rafael Mota* – Em 13 de Dezembro de 1975, a cantora americana Patti Smith lança seu emblemático álbum Horses – um disco de vinil, bem antes das plataformas digitais – com o intuito de influenciar as pessoas a não se sentirem tão sozinhas, a ‘tomarem as rédeas de suas vidas’ e se mover. Ela, que mais tarde seria considerada a “Madrinha do Punk”, abre sua obra prima com a canção Gloria, que começa com o seguinte verso: “Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos meus”.
Provocador, não? Sempre que escuto essa introdução, me pergunto como ela chegou a gravar algo assim. [1] Se bem que esta reflexão não é sobre a música em questão ou sua compositora, penso que nos serve como um bom ponto de partida para refletirmos sobre a Cruz no contexto atual.
Não basta falar sobre a cruz
O que eu percebo é que já não basta ao homem e a mulher modernos falar sobre o ‘sacrifício de Jesus’. Para toda uma geração, essa expressão não passa de um incentivo, uma fonte de inspiração:
- ‘Aguente firme aí! Você também é capaz de tolerar as dores da vida!’
- ‘Nem Jesus agradou todo mundo. Olha que ele era bom, mas mesmo assim o mataram!’
- ‘Todos temos nossas cruzes!’
O sentido mais profundo da Cruz parece ter se ‘diluído entre outros exemplos’ – Jesus passou a não ser mais do que uma biografia bestseller, no melhor dos casos, um case de sucesso para os influencers e coachs. Noto que às vezes, inclusive, se desconfia que Jesus realmente tenha sofrido – ou que o tenha feito por nós, solidariamente:
- ‘Carregou a Cruz, mas Ele era Deus, né?’
- ‘Sempre me emociono com a Paixão de Cristo, mas Ele sabia o que estava fazendo’
Para alguns, inclusive, quem precisava do ‘Espetáculo da Cruz’ era Deus mesmo:
- ‘Depois do pecado, Deus queria a obediência e Jesus veio para deixa-lo satisfeito!’
- ‘Alguém tinha que pagar por nossos pecados! Estávamos em débito com Deus!’
- ‘Para aplacar sua ira contra nós! Para demonstrar seu poder! Para cumprir as profecias! Etc.’
Apresentar Jesus como o ‘Servo Sofredor’, seguindo a noção de Isaías, desperta suspeita de ideologia. Quero dizer: um símbolo de submissão frente as dificuldades e a morte. Percebo que soa como algo inimigo da vida, alienante e que, para muitos, nada tem a ver com a experiência cotidiana humana.
- ‘Mas parece que você gosta de sofrer, né? Tá pior que Jesus!’
- ‘Deixa de ser bobo, reage! Te pegaram pra Cristo e ninguém merece!’
- ‘Se Deus soubesse o que eu tenho que aturar…’
Assim, penso que a reclamação de Patti Smith expressa desejos ainda vigentes em nossa sociedade: autonomia e independência, emancipação e auto validação, superação e realização pessoal.
Outra perspectiva: Cristo-Filho
Procurando resgatar o sentido e apelo do Mistério da Cruz, gostaria de enfocá-lo desde outra perspectiva. Aposto pela relação do Cristo-Filho com o Pai, que marca o viver e morrer de Jesus. [3]
Explico melhor: Jesus viveu com uma opção clara pelo Reino dos Céus e seu alimento era fazer a vontade do Pai (João 4, 34) [2]. Ele o buscava ativamente, com zelo e de modo humano – com gestos e palavras, sem prescindir de seu corpo, valendo-se da psicologia que estava a seu alcance, encontrando forças em sua espiritualidade. Uma vez que começa a alcançar multidões, sua história passa a estar marcada por conflitos e perseguições. Sua proposta se mantém irreconciliável com a mentalidade dominante de seu tempo, portanto é preso e condenado a morrer na cruz.
Este é um momento de Crise. O desenlace não é previsível, não está nada resolvido de antemão. Por vezes, colocamos Jesus demasiado ‘em pé de igualdade’ com o Pai, como se nunca se surpreendesse, com uma confiança inabalável frente ao temor, gozando de uma imunidade ao sofrimento. Pelo contrário, Jesus enfrenta uma novidade com a fé que lhe é possível naquele momento. Neste sentido, sua relação com o Pai se encontra ‘por um fio’, ‘em risco’.
A ressurreição vem como uma ‘virada’, uma mudança de situação, uma comprovação – inclusive permite olhar retrospectivamente para todo o processo e redescobrir a condução providente do Pai. A angústia do Filho se transforma em alegria – os discípulos escrevem o Evangelho com esta certeza.
A Filiação
Vendo assim, a possibilidade do sofrimento não diminui a prontidão de Jesus para trabalhar pelo Reino de Deus. Me atrevo a dizer que não foi a paciência, a perseverança, a renúncia ou tolerância que o levaram à Ressurreição – virtudes demasiado passivas. Senão desejar ativamente manter-se unido ao Pai, mesmo quando as condições incluíam sofrimento verdadeiro.
Por sua vez, o Pai corresponde o amor do Filho. A opção pelo Reino de Deus continua na Ressurreição. Mais ainda, se concretiza nisso: o Pai e Filho estão unidos em um só projeto, que agora triunfa definitivamente sobre a morte e se estende a todo gênero humano. “A Glória de Deus é o homem vivo”, como ensina Santo Irineu. [4]
A cruz, portanto, surge como um convite para que nos reconheçamos Filhos.
Que nos coloquemos em marcha pela vida e a liberdade, construindo o Reino de Deus segundo a vontade do Pai. Que reconheçamos que o Pai não é alheio ao nosso sofrimento, senão que é solidário conosco. Que seu amor se confirma, tal como já ficou demonstrado em Jesus.
Em síntese, a Cruz tem esse potencial para restabelecer, aprofundar, esclarecer e renovar a relação entre o Pai e o Filho. De tal modo que o seguimento de Jesus se traduz em filiação adotiva. Logo, posso afirmar com certeza: Jesus morreu sim por meus pecados, como meu irmão.
* Pe. Rafael Mota pertence ao Instituto dos Padres de Schoenstatt, é Assessor da Juventude Masculina de Schoenstatt
— — — —
[1] Lembremos que nos anos 60-70 o mundo passava por profundas transformações – marcadas pelos movimentos a favor do amor, da liberdade e da igualdade de direitos, pelo vislumbre de Hollywood, por multidões assistindo aos festivais de música, ao surgimento de novos ídolos e à chegada do homem à Lua. Transformações que, no entanto, não deixaram de ter um gostinho amargo – penso na Guerra do Vietnam, nas ditaduras, na crise do Petróleo, nas epidemias (como a de meningite no Brasil), na geografia da fome, no auge do Apartheid com a prisão de Mandela e no assassinato do Presidente Kennedy e de Martin Luther King. Num curto intervalo, grandes artistas partiam: Bobby Fuller, Nat King Cole, Sam Cooke, John Coltrane, Ottis Redding, Jimi Hendrix, Judy Garland, Marilyn Monroe e outros. Assim, Patti Smith chegava aos seus 30 anos com a inspiração, o talento e a ocasião perfeita para compor algo diferente, chocante, poético e excitante.
[2] Podendo exercer sua ação messiânica de outra forma, Jesus quis ter um olhar para os pobres e excluídos, curando os doentes, alimentando os famintos, consolando os desanimados, perdoando os pecadores, ensinando o amor ao próximo, explicando as escrituras com autoridade, ensinando a rezar, chamando discípulos, denunciando a hipocrisia e resgatando a essência da Lei e do Templo.
[3] O acento não pode estar na tolerância, na resignação e aceitação. Também não no ‘Pare de Sofrer’.
[4] Cf. Catecismo da Igreja Católica 294
Fotos: JMJ Panama