As circunstâncias atenuantes no Discernimento Pastoral
Flávia C. Ghelardi* – Seguimos analisando o Capítulo VIII da exortação apostólica Amoris Laetitia sobre as orientações do Papa Francisco de como lidar com as situações mais delicadas, quando há o rompimento do vínculo conjugal.
O Santo Padre insiste na necessidade de um discernimento especial no caso de algumas situações irregulares, pois mesmo se a pessoa tem conhecimento da norma, no caso por exemplo, da indissolubilidade do matrimônio, “pode ter grande dificuldade em compreender os valores inerentes à norma ou pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa”. (AL 301)
Assim, não se pode objetivamente afirmar que as pessoas nessas condições estejam com certeza em estado de pecado mortal. Citando o Catecismo da Igreja Católica, ele afirma: “A imputabilidade e responsabilidade dum ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais. E, noutro parágrafo, refere-se novamente às circunstâncias que atenuam a responsabilidade moral, nomeadamente a imaturidade afetiva, a força de hábitos contraídos, o estado de angústia e outros fatores psíquicos ou sociais.” (AL 302)
Desta forma está claro que um juízo negativo sobre a situação, ou seja, que efetivamente o divórcio é um mal, que fere tanto as pessoas envolvidas, como os filhos oriundos dessa união, os familiares e até toda a sociedade, não significa necessariamente que o casal, ou um dos cônjuges, possa ser culpabilizado diretamente pela situação.
Esse novo olhar que o Papa Francisco sugere para essas situações tão dolorosas e difíceis tem como objetivo ajudar a todos os envolvidos a amadurecerem e, a partir do reconhecimento de suas falhas e limitações, buscar um aprimoramento da própria consciência e a busca de viver plenamente o ideal católico do matrimônio. Isso tudo aceitando as próprias circunstâncias e reconhecendo “também, com sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança moral que esta é a doação que o próprio Deus está pedindo no meio da complexidade concreta dos limites, embora não seja ainda plenamente o ideal objetivo” (AL 303)
É importante ressaltar que esse discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal de forma mais completa. Ou seja, não se deve acomodar com uma situação abaixo do ideal, deve se procurar sempre crescer, alcançar o máximo possível dentro das próprias circunstâncias.
As normas e o discernimento
Aqui o Santo Padre faz um pedido insistente para que cada caso concreto seja analisado de maneira particular, seguindo o ensinamento de Sto. Tomás de Aquino que diz “embora nos princípios gerais tenhamos o carácter necessário, todavia à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbito da ação, a verdade ou a retidão prática não são iguais em todas as aplicações particulares, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a retidão é idêntica nas próprias ações, esta não é igualmente conhecida por todos. (…) Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação” (AL 305)
O Papa afirma mais uma vez que o ensinamento da Igreja sobre o matrimônio é um bem que nunca se deve ignorar nem esquecer, por isso a análise ou uma solução no caso concreto jamais pode ser elevada ao caráter de norma. Desta forma está claro que as regras morais sobre o sacramento do matrimônio não serão alteradas, mesmo porque foram dadas pelo próprio Jesus no Evangelho, mas que cada caso individual deve ser olhado com muito cuidado para ver como essa norma é aplicada, pensando sempre no bem de cada pessoa e na salvação da sua alma.
“O discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites. (…) Lembremo-nos de que um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades.” (AL 305). Em toda e qualquer circunstância onde haja dificuldade em viver plenamente a lei de Deus, deve sempre recorrer à vida da caridade. (AL 306)
A lógica da misericórdia pastoral
O Santo Padre encerra esse capítulo deixando bem claro: “de modo algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do matrimónio, o projeto de Deus em toda a sua grandeza” (AL 307). Ele encoraja aos jovens para não hesitarem perante a riqueza do sacramento do matrimônio.
“A tibieza, qualquer forma de relativismo ou um excessivo respeito na hora de propor o sacramento seriam uma falta de fidelidade ao Evangelho e também uma falta de amor da Igreja pelos próprios jovens. A compreensão pelas situações excepcionais não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor menos de quanto Jesus oferece ao ser humano. Hoje, mais importante do que uma pastoral dos falimentos é o esforço pastoral para consolidar os matrimônios e assim evitar as rupturas”. (AL 307)
A misericórdia tem um papel muito importante nesse processo de acolhimento, pois somos chamados a viver de misericórdia, porque primeiro foi usada a misericórdia para conosco. O Papa ressalta: “É verdade, por exemplo, que a misericórdia não exclui a justiça e a verdade, mas, antes de tudo, temos de dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais luminosa da verdade de Deus. Por isso, convém sempre considerar inadequada qualquer concepção teológica que, em última instância, ponha em dúvida a própria onipotência de Deus e, especialmente, a sua misericórdia.” (AL 311)
Desta forma, em nenhum momento o Papa relativiza o significado e a importância do sacramento do matrimônio. Ele apenas convida a um olhar misericordioso para com as situações mais difíceis e ressalta a importância de consolidar os matrimônios e evitar as rupturas. Como diria o Pe. José Kentenich, precisamos nos esforçar para “salvar as famílias, custe o que custar!”
Você pode ler aqui todos os outros artigos já publicados, com a síntese desse documento tão importante.
Este artigo faz parte da série de artigos que sintetizam a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia do Santo Padre, o Papa Francisco
*Flávia e seu esposo Luciano são membros da União de Famílias de Schoenstatt