Para os cidadãos que estão no meio do fogo cruzado dos exércitos, não existe vitória real
Francisco Borba Ribeiro Neto – O mundo ficou horrorizado ao saber que 471 pessoas, incluindo crianças, morreram quando um foguete explodiu um hospital em Gaza. Quem disparou o foguete é bem menos relevante do que parece. Ninguém gasta uma fortuna comprando um foguete para destruir um hospital cheio de civis – é dinheiro jogado fora! Mas quem lança um foguete sabe que um erro pode levar a uma tragédia como essa. Quando se propuseram a usar foguetes, nessa guerra entre Israel e os terroristas do Hamas, os dois lados aceitaram tacitamente o fato de que iriam matar inocentes.
Para os cidadãos que estão no meio do fogo cruzado dos exércitos, não existe vitória real – terão inevitavelmente que conviver com a dor da perda de vidas queridas e de um patrimônio material que era a sua sobrevivência. “Com a guerra tudo se perde, tudo se perde. Não há vitória numa guerra: tudo é derrotado”, lembrou o Papa Francisco. Isso vale para israelenses e palestinos, para os ucranianos e para as populações de outras regiões que também estão em conflito (são pelo menos oito guerras acontecendo nesse momento no mundo, além de vários conflitos menores). Um cenário de horror que a humanidade tenta superar há décadas, com um sucesso apenas relativo.
A tecnologia a serviço do mal
Durante a guerra do Iraque, em 2003, houve uma propaganda que afirmava que a tecnologia de ponta utilizada pelos americanos eliminaria o risco para alvos civis. No entanto, essa propaganda não correspondeu à realidade: a guerra foi marcada por um grande número de mortes de civis e pela destruição de grande parte da infraestrutura do país, incluindo hospitais, escolas e sistemas de água e energia.
Em teoria, os acordos multilaterais e o desenvolvimento tecnológico deveriam permitir cada vez menos guerras – e as que acontecessem seriam cada vez mais “civilizadas” não vitimando civis. Mas não é isso que vemos acontecendo… Os recursos tecnológicos permitem que aqueles que têm o poder seja cada vez mais mortíferos, mas a sabedoria do diálogo e da paz não avança tão rápido.
Bento XVI, na sua encíclica Spe salvi (SS), observou que “um progresso por adição só é possível no campo material […] Mas, no âmbito da consciência ética e da decisão moral, não há tal possibilidade de adição, simplesmente porque a liberdade do homem é sempre nova e deve sempre de novo tomar as suas decisões” (SS 24).
O desenvolvimento tecnológico sem o desenvolvimento humano
Retomando as ideias do teólogo católico Romano Guardini, o Papa Francisco, tanto na Laudato si’ (LS) quanto na recente Laudato Deum, alerta para os perigos de uma mentalidade que acredita que o poder é bom em si mesmo: “Tende-se a crer que toda a aquisição de poder seja simplesmente progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de plenitude de valores, como se a realidade, o bem e a verdade desabrochassem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia. A verdade é que o homem moderno não foi educado para o reto uso do poder, porque o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência […] O ser humano não é plenamente autônomo. A sua liberdade adoece, quando se entrega às forças cegas do inconsciente, das necessidades imediatas, do egoísmo, da violência brutal. Neste sentido, ele está nu e exposto frente ao seu próprio poder que continua a crescer, sem ter os instrumentos para o controlar. Talvez disponha de mecanismos superficiais, mas podemos afirmar que carece de uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que lhe ponham realmente um limite e o contenham dentro dum lúcido domínio de si” (LS 105).
Essa é a lógica que anima todas as guerras, espalhando dor e sofrimento pelo mundo. Mas não é uma lógica presente apenas entre os terroristas islâmicos ou alguns chefes de Estado autoritários e belicosos. Nós mesmos estamos sujeitos a ela…
Também entre nós
Na chamada “dark web”, aqueles sites da Internet que não são localizados pelos motores de busca convencionais, e que circulam pornografia, tráfico de drogas e cybercrimes, os jovens aprendem a construir bombas e são incitados a cometer atentados. Podemos nos escandalizar com isso, mas temos que ter em mente que essa violência também está vinculada a essa ideia de que podemos fazer tudo aquilo que quisermos, se tivermos poder para isso.
Mesmo nas comunidades cristãs, quantas vezes não ouvimos (ou nós mesmos pensamos) que aqueles que pensam diferente deveriam ser “passados num pelotão de fuzilamento”? A opção pela violência sempre está presente em nosso subconsciente e frequentemente é impulsionada pelas mídias sociais e pelos influenciadores sociais – inclusive por alguns que se apresentam como defensores da fé e dos bons costumes! Quando nos entregamos a essas ideias violentas, só a falta de poder nos protege de sermos nós mesmos os artífices de novas tragédias.
Ter “uma ética sólida, uma cultura e uma espiritualidade que nos ponham realmente um limite nos contenham dentro dum lúcido domínio de si”, como sugere o Papa Francisco, é uma tarefa para todos nós – e que não é tão fácil como pode parecer. São dois comportamentos éticos que andam juntos e para os quais temos que nos educar: rejeitar a violência e não nos deixarmos seduzir pelo poder.
Rejeitar a violência implica não nos deixarmos arrastar pela raiva diante de todas coisas que nos deixam indignados. A indignação é justa, mas deve levar a uma resposta justa e adequada, não a uma explosão de raiva e violência. A sedução do poder é mais sútil, mas nos domina toda vez que acreditamos que, para que o bem se realize, basta que tenhamos o poder para sujeitar aos demais. O mundo não funciona assim! O bem pressupõe a liberdade, nossa e daqueles que são nossos antagonistas, aquilo que é imposto pelo poder, mais cedo ou mais tarde, se voltará contra o bem comum.
Fonte: Aleteia