Pe. Antonio Bracht* – Celebramos essa coroação mais uma vez. Já são 75 anos de sua realização. O que pode significar para nós hoje a filialidade heroica?
No dia 20 de agosto de 1949, o Pe. José Kentenich, Fundador da Obra de Schoenstatt, coroou Nossa Senhora no Santuário, em Santa Maria/RS, com o título Rainha da Filialidade Heroica. Esse fato tem uma grande relevância na vida do Fundador e do Movimento.
Brevemente, gostaria de apresentar aqui uma chave para uma leitura da coroação de Nossa Senhora, como Rainha da Filialidade Heróica a partir da perspectiva atual.
Para compreender a relevância da coroação é preciso conhecer o seu contexto histórico. Apresentá-lo aqui, no entanto, levaria muito longe. Remeto à literatura correspondente[1].
Chave de leitura: Ser filho diante de Deus
A chave de leitura desse proceder do Fundador está na concepção do ser humano que o orientava, que ele considerava estar seriamente em risco de se desvirtuar, e sua proposta de como reverter esse desenvolvimento na vida e na cultura atual, vivendo o “ser filho diante de Deus”.
Em reflexões posteriores sobre a essa coroação o Fundador designa a filialidade heróica como o “elemento essencial da nossa espiritualidade”. Na trajetória do Fundador com seu Movimento, em inúmeros retiros e cursos, ele apresentou um exemplo inspirador para o que entendia ser a filialidade, e sua importância – o caminho da infância espiritual de Santa Terezinha do Menino Jesus[2].
É, portanto, na análise da cultura atual, na qual ele detecta uma “fuga de Deus” e, em consequência, a busca de uma nova humanidade, que o Fundador apresenta a relevância do tema da filialidade, e a urgência em oferecer caminhos de solução alternativos.
Contexto: Um momento dramático
Aqui encontramos a chave de leitura, não apenas para sua reflexão, mas para o que ele realizou com o gesto da coroação do 20 de agosto, num momento de dramático confronto com a Igreja. Em se tratando de questões relativas a uma “nova humanidade”, o Fundador não falava teoricamente. Sua experiência com o nazismo na Alemanha e sua prisão no campo de concentração de Dachau, havia lhe ensinado que a resposta a um movimento de tal pretensão e usurpação só podia ser dada pela vida.
Analisando movimentos culturais, filosóficos (ou pseudo-filosóficos) e políticos, como o nazismo, o Fundador constata que eles apresentam a visão de um ser humano “humanizado”, quer dizer, reduzido a sua realidade terrena, física e imediata. O ser humano assim concebido e promovido não se sustenta. Decai, despertando os impulsos mais primários que contém em si, divide-se interiormente numa dicotomia enfermizante, torna-se inseguro e desmotivado, sujeita-se ao ritmo das máquinas e renuncia a pensar – em uma palavra: se desumaniza! A chave que o Fundador usa fica ainda mais clara se considerarmos alguns desafios no contexto desse humanismo, com o qual ele se confrontava.
A otimização do ser humano
Servindo-se da tecnologia, e acreditando que com ela pode solucionar todos os problemas, muitos pretendem otimizar o ser humano. Na verdade, o desfiguram, roubam-lhe a dignidade que ele só pode manter, se vive a sua originalidade, dom do seu Criador.
O que é heroísmo
Heróis e heroísmo no plano natural. Quando ouvimos falar de “heróis”, em geral, estamos diante da apresentação de atos de superação do ser humano, em situações extremas. O Fundador do Movimento concebe o heroísmo, a partir da entrega a Deus, da renúncia de si mesmo e não a partir de atos de superação, por mais que estes possam ser a expressão dessa entrega e dessa renúncia, sendo por isso dignos e meritórios.
Autonomia e dependência de Deus – A pretensão de viver uma vida sem Deus, na autonomia total, gera ansiedade e mina a confiança. O que pretensamente liberta o ser humano, parece aprisioná-lo mais fortemente nos produtos que consome e nas estruturas que edifica para si.
Medo do sofrimento – a incapacidade para a dor, a fuga da cruz revela um ser humano que não sabe o que fazer com ela. Não o sabe porque rejeita a Cristo, o único ser que pode dar sentido ao sofrimento, exatamente porque assumiu uma cruz e com seu sacrifício nos libertou do pecado, dando-nos a possibilidade de encontrar sentido para o nosso sofrimento.
Ler também: Este tempo exige filhos heroicos
O ser humano divinizado
A esta visão e a este processo de decadência, hoje em escala mundial, o Fundador contrapõe a visão de um ser humano “divinizado”, que se entende a partir de Deus, seu criador e redentor, seu fim último; que vive o que Deus colocou nele como potencial. Isso na força fundamental do amor.
Mais uma vez, a experiência de vida do Fundador lhe proporciona os elementos para desenvolver sua visão. Ele havia feito uma experiência profundamente libertadora e restauradora da sua vida na pessoa de Nossa Senhora e isso em diferentes etapas de sua vida.
Ela nos leva a Cristo
Assim entendemos porque coroar Nossa Senhora. Ela, reconhecida como Rainha, nos faz entrar numa dinâmica de fé que leva a descobrir Cristo, segui-lo e viver sua vida em nós. Cristo é o Filho amado de Pai, e como tal oferece a base para a nossa vida e nosso atuar de filhos.
Ao comemorarmos a passagem da data do 20 de agosto, somos convidados a renovar a coroação. A Mãe de Deus, hoje como então, quer levar a vida de Cristo a transfigurar a nossa, levando a nossa vida ao heroísmo do triunfo de Deus no ser humano, ou à plena humanização do ser humano.
Ler também: A oração de coroação de 20 de agosto
_________
[1] Veja-se entre outros: Movimento Apostólico de Schoenstatt, Introdução Histórica I e II, Trevisan, Victor, Santa Maria, 1986. Revelando o Tabor (material de formação para grupos), Central Nacional de Assessores (Editor), José Kentenich, Filialidade Heróica, Sociedade Mãe Rainha (editor), Santa Maria, 2008.
[2] Veja-se entre outros: Schoenstatt Lexikon, Hubertus Brantzen (editor), Patris Verlag, Vallendar, 1996. Kentenich, Josef, Dass neue Menschen werden (jornada pedagógica de 1951), Schoenstatt Verlag, Vallendar 1971. Kentenich, Joseph, Ser Filho diante de Deus, Instituto Secular Padres de Schoenstatt (editor), 1994
* Pe. Bracht é Diretor Nacional do Movimento Apostólico de Schoenstatt, no Brasil