Mais que sentimento, ter atitude.
Pe. Carlos Padilla – Entender que Deus é nosso Deus e que ele é quem pode encher nosso coração é um caminho que temos que percorrer: “Naqueles dias Deus pronunciou todas estas palavras: ‘Eu sou o Senhor teu Deus que te tirou do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses além de mim. Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que existe em cima, nos céus, ou embaixo, na terra, ou do que existe nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante destes deuses nem lhes prestarás culto, pois eu sou o Senhor teu Deus, um Deus ciumento. Castigo a culpa dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam, mas uso da misericórdia por mil gerações com aqueles que me amam e guardam os meus mandamentos”.
Nosso Deus é um Deus fiel que permanece sempre em nosso caminho quando nós caminhamos ao seu lado. É um Deus libertador, porque tem nos tirado de nossa escravidão. Ainda que vivamos escravos e não nos deixemos libertar por Deus. O Pe. Kentenich dizia: “O Espírito Santo quer abrir-nos os olhos, quer nos mostrar que estamos atados e fundidos à cadeia da escravidão que nos faz infelizes. Mas também quer nos ensinar e convencer que podemos romper essas cadeias de escravidão. Ele quer nos ensinar o caminho da justiça e da santidade verdadeira por meio do Senhor que nos tem aberto o caminho até o Pai e ele mesmo nos ajuda percorrer esse caminho ”.
Nesta terceira semana queremos libertar-nos de nossas cadeias. Atamo-nos aos nossos vínculos, pretendendo que as pessoas preencham o espaço vazio que só Deus poderá preencher. Atamo-nos a nossos pontos de vista, pensando que os demais estão equivocados. Pretendemos fazer tudo bem, pensando que assim seremos felizes e o mundo estará feliz conosco. São ataduras, cadeias, que não nos deixam olhar a Deus com um coração livre. Estamos muito apegados ao mundo. Criamos relações não tão livres que nos atam. E não aceitamos que é impossível que todos nos queiram bem. Não chegamos a todos, não é possível, é necessário aceitar nossos limites. São as cadeias que não nos deixam aspirar ao mais alto.
Abandonar-se em Deus
(Foto: José Kataoka)
Suplicamos que o Espírito Santo venha nessa Quaresma e nos faça ver onde estão as correntes que nos atam. A Quaresma é um convite para viver próximo de Deus, a estar com ele.
Marta Robin, camponesa e analfabeta, é uma mística francesa do século XX. Entregou sua vida a Deus aos 79 anos de idade. Viveu os últimos cinquenta e três anos paralisada em uma cama, cinquenta e dois padecendo os estigmas do Senhor e os quarenta e dois últimos anos cega. Todo aquele tempo o passou sem comer nem beber, num sacrifício oferecido de modo voluntário. Mas a ela não lhe custava grandes esforços: “Tenho desejo de gritar aos que me perguntam se como, que eu como mais que eles, pois me alimento na Eucaristia do Sangue e da carne de Jesus”.
É certo que Marta não podia engolir a hóstia que colocavam em sua língua. Absorvia-a sem comê-la, produzindo uns efeitos espirituais imediatos sobre ela: “É como se um ser vivo entrasse em mim”. E rezava a Maria: “Ó Maria, minha doce Mãe, concede-me neste dia o abandono completo, o abandono perfeito, o abandono pleno de amor ao Amor. Que por meio de ti, contigo, e em ti, Virgem pura, eu ame, adore, rogue, expie, suplique e sofra cada dia com maior amor. Que minha vida seja um ‘sim’ de amor. Que eu seja uma alma inteiramente consagrada a Jesus”.
Ao escutar esse testemunho compreendemos que é possível viver e descansar em Deus, que é possível abandonar nossa vida em suas mãos. Embora também saibamos que nós necessitamos das pessoas, seu amor limitado e pobre para chegar ao coração de Deus. Mas o que não queremos é que esses vínculos nos afastem de Deus. Ao contrário, queremos chegar a Deus através daqueles que amamos. Porque sabemos que só Deus sacia a sede de infinito que padece na alma.
Contudo, muitas vezes nos empenhamos em buscar outros alimentos, queremos outros consolos, buscamos uma paz que só momentaneamente nos dão os homens e as coisas e, assim, vivemos descontentes.
O amor é o começo e o fim
O Deus que seguimos é um Deus fiel que busca nossa amizade e nos pede ser fiéis seguindo um caminho marcado por seus mandamentos: “Não pronunciarás o nome do Senhor teu Deus em vão, porque o Senhor não deixará sem castigo quem pronunciar seu nome em vão. Lembra-te de santificar o dia de sábado. Trabalharás durante seis dias e farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é sábado dedicado ao Senhor teu Deus. Não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu gado, nem o estrangeiro que vive em tuas cidades. Porque o Senhor fez em seis dias o céu e a terra, o mar e tudo o que eles contêm; mas no sétimo dia descansou. Por isso o Senhor abençoou o dia do sábado e o santificou. Honra teu pai e tua mãe, para que vivas longos anos na terra que o Senhor teu Deus te dará. Não matarás. Não cometerás adultério. Não furtarás. Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu jumento, nem coisa alguma que lhe pertença” (Êxodo 20, 1-17)
Muitas vezes, ao pensar nos mandamento, pensamos num diálogo de proibições e ordens e não vemos o sentido. Porque nos perdemos na casualidade e deixamos de nos alegrar com a vida. Deixamos de pensar, então, que as palavras de Deus dão vida.
Assim repetimos no Salmo: “Senhor, tens palavras de vida eterna. A lei do Senhor Deus é perfeita, conforto para a alma! O testemunho do Senhor é fiel, sabedoria dos humildes. Os preceitos do Senhor são precisos, alegria ao coração. O mandamento do Senhor é brilhante, para os olhos é uma luz. É puro o temor do Senhor, imutável para sempre. Os julgamentos do Senhor são corretos e justos igualmente. Mais desejáveis do que o ouro são eles, do que o ouro refinado. Suas palavras são mais doces que o mel, que o mel que sai dos favos” (Sal 18, 8. 9. 10. 11).
Seus mandamentos nos ajudam a pôr cada coisa em seu lugar, a estabelecer nossa escala de valores, a colocar nossas prioridades e saber o que tem de ser mais importante. O amor é o começo e o fim. Começa com o amor a Deus e segue com o amor ao próximo. Porque sem amor a vida deixa de ter sentido. Se nosso amor é maduro podemos seguir a Deus com facilidade e entender que seu caminho é doce e sua vontade preciosa.
Olhar os mandamentos
(Foto: Karen Bueno)
Mas o desejo de cumprir os mandamentos pode nos tornar rígidos. Não os obedecemos para ser perfeitos, porque cremos que só assim tudo nos ocorrerá bem e Deus vai estar contente. Não. Os mandamentos são uma sabedoria da vida, um caminho, um ensinamento que mostra como atuar em cada momento. Eles nos ensinam como nos comportar em relação à nossa família, com Deus, com os demais, com nossos bens, com nós mesmos e nossas inclinações. São uma escola para aprender a viver melhor.
Quando Deus nos apresenta o desafio de seguir os mandamentos o faz para proteger o verdadeiro templo de nosso coração. Porque entende que se nos deixamos levar pela vida e pelas tentações, não chegaremos nunca a um bom porto. Porque o mundo não sabe o que é correto e o que não é. Bento XVI dizia: “A cultura contemporânea parece ter perdido o sentido do bem e do mal, por isso é necessário reafirmar com força que o bem existe e vence, porque Deus é bom e faz o bem” (Sal 119, 68).
Olhar esses mandamentos novamente e meditar sobre seu sentido mais profundo nos ajuda a entender o que Deus sonha para nossa vida. Qual é nossa escala de valores? Quais são nossas prioridades e princípios fundamentais? Muitas pessoas se deixam levar pelas correntes do mundo, sem pensar muito, sem se aprofundar. Quando nos deixamos levar pelo mundo, acabamos pensando e vivendo de acordo com o mundo.
Tudo é dom
O templo de Jerusalém estava cheio de vendedores e cambistas e para todos isso era algo normal. As normas do povo judeu permitiam. Assim também nossa alma está cheia de vendedores que buscam seu próprio interesse e nós os permitimos. Deixamo-nos levar e aceitamos que a alma está cheia de outras prioridades. Deus não tem o primeiro lugar em nossa vida diária. Hoje recordamos que o verdadeiro templo é Cristo e Cristo quer fazer morada no templo de nosso interior. Dizia o Pe. Kentenich: “Não é meu corpo também templo do Espírito Santo? Sim, temos que tomar isto ao pé da letra. Este templo está consagrado por meio dos sacramentos e eu tenho que cuidar, guardar e vestir belamente ”
Jesus humano protegia com ira o lugar sagrado, o lugar das orações e queria que estivesse dedicado somente a Deus. Da mesma forma quer cuidar de nossa vida, quer que sejamos coerentes, quer que amemos com pureza de coração. Dizia Santo Agostinho, comentando o Evangelho: “Os que vendem na Igreja são os que buscam o que lhes agrada e não o que agrada a Jesus Cristo, fazendo tudo vendável, porque querem ser pagos. Era por aqueles que vendiam pombas, porque o Espírito Santo apareceu em forma de pomba; mas a pomba não se vende, dá-se gratuitamente, porque se chama graça”.
Tudo é dom e essas palavras no-lo recordam. O importante em nossa vida não é o que podemos comprar ou vender, não é aquilo pelo qual pagamos. Tudo é dom. Tudo é de Deus. Acostumamo-nos a fazer as coisas por interesse e então a alma se enche de trocas. Não nos damos com liberdade. Esperamos algo em troca de tudo o que fazemos. E assim a alma não pertence a Deus, não é casa de oração e seu espírito não nos consola.
Jesus se contradiz no Evangelho?
(Foto: Karen Bueno)
A ira santa de Deus torna a nos surpreender hoje: “Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém. No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados. Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas. E disse aos que vendiam pombas: ‘Tirai isto daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!’ Seus discípulos lembraram-se, mais tarde, que a Escritura diz: ‘O zelo por tua casa me consumirá’”.
Ao ver a ira de Jesus, o coração não entende. Como se compara o trato cheio de ternura do Jesus que faz milagres, cura enfermos, sara com suas mãos o cego, liberta da lepra, ressuscita os mortos, com esse chicote que em suas mãos expulsa os cambistas? Como entender que é o mesmo Jesus, o que cala ante Pilatos, fala das Bem-Aventuranças, se mostra manso e humilde de coração, suporta paciente os castigos e este Jesus que clama contra aqueles que têm convertido a casa de seu Pai em cova de ladrões? A ira e a ternura, o amor compreensivo e o grito que recrimina. Não entendemos.
Queríamos que essa passagem desaparecesse da Bíblia porque nos incomoda. Não podemos entender que a ira seja o caminho e não nos agrada ver essa emoção tão humana de Cristo expulsando aos que vendiam no templo. Não compreendemos o gesto de violência, porque vemos muita violência a nosso redor, gritos, insultos, agressões, assassinatos. O mundo já tem violência demais para ver Cristo atuar com ira. Por isso não entendemos. Sua violência expulsando os vendedores e limpando a casa de seu Pai parece-nos difícil de assimilar. Sentimo-nos mais próximos do Jesus orante, que cura, misericordioso, ferido, humilhado.
A cruz nos aproxima mais que a violência. Seu silêncio mais que seus gritos. A ira do Senhor para afastar do templo os mercadores permitiu que muitos escrevessem a respeito. Tem-se querido justificar o uso da violência para impor as próprias crenças. Mas Jesus só reage frente à injustiça. Acontecia que os cambistas não somente estavam roubando o povo, mas a história informa também que eles vendiam os animais – que eram usados para sacrifício no templo – por um valor excessivo. Ressoam em seus gestos as palavras de Isaías: “Estou farto de vossos holocaustos. O sangue de novilhos e cabritos machos não me agrada. Não me tragas mais dons vazios que nãos os aguento. Vossas solenidades e festas as detesto, se tornaram uma carga que não suporto mais” (Is 1, 11-13).
Sua ira é santa
A ira de Jesus é uma ira santa. O zelo pela casa de seu Pai o move a agir. O zelo de Jesus é o zelo de Deus, expressado assim no decálogo: “Não terás outros deuses além de mim. Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que existe em cima, nos céus, ou embaixo, na terra, ou do que existe nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante destes deuses nem lhes prestarás culto, pois eu sou o Senhor teu Deus, um Deus ciumento”.
Jesus via a injustiça, o esquecimento de uma vida santa e a ausência da pureza de coração.
Não tem pecado, sua ira é santa, não nasce do ódio, mas do amor. Já dizia São João Crisóstomo: “Quem havendo causa não se irrita, peca. A paciência irracional é sementeira de vícios, fomenta a negligencia e até mesmo os bons incita ao mal”. Isso não significa que qualquer ira seja querida por Deus. Muitas vezes calamos e pode ser necessário, como me dizia uma pessoa faz um tempo: “Mas quando tenho a tentação de dizer algo, às vezes tento calar-me e pedir à Mãe que coloque ordem no meu coração. Sei por experiência própria que quando digo algo, semeio essa mesma imundície que tenho no coração e perco minha paz. Para que falar? Nem sequer me serve de alívio. E a Mãe me faz vê-lo e vivê-lo um pouco”.
É verdade que em ocasiões determinadas nosso silêncio é mais valioso que nossas palavras. Nem sempre é bom dizer tudo o que pensamos. Além disso, em qualquer caso, não é bom que a ira nos domine. Nesses momentos deixa de ser uma ira santa. Já dizia São Gregório: “Que a ira não chegue a dominar a mente; que não se porte como senhora, mas como serva, disposta a obedecer as ordens do coração”. Estamos chamados a dominar a ira que nos faz pecar. Contudo, não é má essa ira santa que, movida pela injustiça e o mal que nos rodeia, busca recuperar a pureza que se tem perdido. É está ira santa que movia a Jesus.
Texto retirado da homilia do Pe. Carlos Padilla de 11 de março de 2012