Homilia do Pe. Alexandre Awi Mello – 50 anos de morte do Padre Kentenich – Schoenstatt, 15/09/2018
“Todo grande homem é uma carta de Deus para o seu tempo, uma mensagem para os homens”. Exatamente 50 anos atrás, Dom [Heinrich] Tenhumberg aplicava estas palavras ao Padre Kentenich na missa de seus funerais. Uma carta escrita “não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em corações viventes” (2Cor 3, 1-3). “O livro da sua vida é o nosso livro de Deus”. Mas, o mais interessante daquela inesquecível homilia – embora eu ainda não tivesse nascido – é que o pregador aplicou essas palavras de São Paulo não apenas ao livro da vida do Pai, mas para nós, para o livro da nossa vida: somos a carta de apresentação do Pai! “O que a Igreja dirá alguma vez sobre nosso Pai e Fundador”, dizia o pregador, “se decide em nossa vida, se decide em como lemos essa carta que Deus nos escreveu e como a respondemos”.
Portanto, creio que a nossa reflexão hoje deveria centrar-se na Família do Pai, desafiada por São João Paulo II a “canonizá-lo” com a nossa vida, pois “o carisma dos fundadores é uma experiência suscitada pelo Espírito, que é transmitida a seus discípulos, para que estes a vivam, a guardem, a aprofundem e a desenvolvam constantemente, na comunhão da Igreja e para o bem da Igreja” (20/9/1985). Ou seja, o Pai só vive hoje e viverá no futuro se nós vivermos seu carisma, se nós “o tiramos de sua tumba” com nossa vida.
Recentemente, uma Irmã de Maria me fez notar a beleza simbólica do túmulo de São Bonifácio na Catedral de Fulda. A obra de Johann Neudecker, de 1710, apresenta o “Apóstolo dos Alemães” saindo do túmulo, ajudado por dois anjinhos. Não sei se esta era a intenção do autor, mas nossa interpretação – quando interpretamos “em família” o resultado é sempre melhor – é que o túmulo não pode conter a grandeza do santo e os anjos o ajudavam a “sair da tumba”, a irromper novamente no mundo que tanto necessita de seu carisma. Aplicamos, então, a imagem do santo ao nosso Fundador. E, embora não sejamos “anjinhos”, vimos a nós mesmos, seus filhos, naquelas figuras, como aqueles que colaboram para que a força de seu carisma irrompa na Igreja. O Pai necessita de mediadores, de transparentes que o “desenterrem”, o “mostrem vivo”, o encarnem e o transmitam ao mundo.
Mas o que queremos desenterrar? O que necessitamos transmitir ao mundo hoje? Dom Tenhumberg nos falou de três capítulos do livro da vida do Pai: a mensagem do Deus da Vida, a Aliança de Amor com a Mãe Três Vezes Admirável e a consciência da missão de Schoenstatt para o tempo atual. Esses capítulos se referem ao que chamamos de tríplice mensagem de Schoenstatt, características essenciais de nosso carisma, nosso dom e tarefa, nossa contribuição fundamental, base de todas as outras contribuições. Conscientes de nossa missão, em Aliança com Maria, fiz o exercício de escutar o Deus da Vida, e me atrevo hoje a continuar extraindo ao menos outros três capítulos da carta que Cristo escreveu no coração do Padre Kentenich por meio do Espírito Santo. Da tarefa que tenho hoje, os vejo como contribuições valiosas para a Igreja e para a época atual, em tempos de Papa Francisco. Seguramente esta carta tem muitos outros capítulos, mas como não posso estender-me muito, tive que selecionar. Para que depois o possam recordar melhor, os três capítulos – em espanhol (e em latim) – começam com “P”: pedagogia, piedade, paternidade (paedagogia, pietas, paternitas). Os três devem ser lidos a partir da Aliança com Maria: pedagogia mariana, piedade mariana, paternidade (e maternidade) mariana. Eu devo ser sintético, mas talvez aqui haja pistas para continuar aprofundando.
- Paedagogia (Pedagogia):
A pedagogia Kentenichiana pode contribuir muito para levar adiante as intuições pastorais do Papa Francisco. Muitos movimentos são ricos em espiritualidade e espírito missionário, mas poucos têm uma pedagogia tão rica e concreta como a nossa. Ante a crise de identidade que vive o homem, Papa Francisco insiste na missão pessoal de cada um (“Eu sou uma missão neste mundo”, EG 273), o que chamamos “ideal pessoal”. Ante os dogmatismos, ele apoia uma pastoral de processos, o que chamamos “pedagogia de movimento”. Ante a crise de vínculos, propõe a cultura do encontro com Deus e o irmão, nossa “cultura da aliança” (como ele nos disse no jubileu), que vê a fé como relação viva de amor mais que como conhecimento doutrinal. O Papa, como nosso Fundador, aposta nas atitudes de confiança, liberdade, amor e respeito tão presentes em nossa pedagogia. Ante o relatório do visitador, o Pai afirmou que o pedagógico era o nível em que Schoenstatt “queria ser julgado e valorizado desde o início”. Esta era e continua sendo nossa contribuição e nossa originalidade. Ainda mais se pensarmos no “toque” mariano dessa pedagogia. Maria como “Educadora” é uma perspectiva original tanto para correntes pedagógicas como para os movimentos de espiritualidade.
- Pietas (Piedade)
Nossa piedade não é um “pietismo”, mas uma piedade instrumental, mariana e popular. Os movimentos marianos muitas vezes são identificados na Igreja como “devocionistas”, “conservadores” e, inclusive, como sendo “de direita”. Seria um erro grave “catalogar” Schoenstatt desta forma. Nosso Marianismo é profético, como o de Maria no Magnificat, é instrumento para a “revolução da ternura” mariana, como ensina o Papa Francisco. Nosso marianismo é ativo, pedagógico, transformador de corações e de estruturas. Nossa piedade mariana é instrumental, isto é, é missionária (como espera o Papa de uma “Igreja da Saída”, EG 20-24). Nosso marianismo também é popular. Esta foi a grande “jogada” do Padre Kentenich nos anos 30! Maria vive no povo! (Recentemente tive a graça de concluir um estudo de doutorado sobre a piedade popular mariana.) Poucos movimentos são tão conscientes da “força evangelizadora de piedade popular” (EG 122-126) como o nosso. Nossa origem é um Santuário mariano! Nascemos para ser “especialistas em pastoral de santuário”, em peregrinações, em símbolos e expressões populares. Por um humilde “pequeno aluno” de Kentenich, o brasileiro João Pozzobon, Deus suscitou a Campanha da Mãe Peregrina, que tem uma força pastoral e popular incrível. Assim como Francisco, Kentenich também desconfiou de certos setores intelectualistas na Igreja, que não têm sensibilidade para evangelizar a partir da fé do povo, de seu sensus fidelium (como, por exemplo, ante algumas correntes do movimento litúrgico), considerando-a uma fé de “segunda categoria”: “Nós, o povo católico simples, não temos nos deixado confundir na batalha travada pela piedade popular mariana. Nosso sadio sentimento católico conservou a posição de Maria (em nossa fé) “(12/13/1964). Hoje segue diminuindo a valorização do popular e do mariano na Igreja. Isso é grave. Acredito que desde nosso carisma podemos ajudar a salvar a piedade popular e mariana.
- Paternitas (paternidade)
Acredito que é uma das contribuições mais conscientes do nosso carisma. A experiência que faltou na infância do Pai se tornou sua missão de vida, transmitida à sua Família espiritual. Sadia paternidade que desperta sadia filialidade. O pai (e a mãe) no plano natural é transparente do Pai (e da Mãe) celestial. Não se trata só da paternidade do Padre Kentenich, mas também de nossa paternidade e da capacidade de ver nos seres humanos a paternidade do Pai (Deus, Kentenich); trata-se de nossa filialidade diante de Deus e seus representantes humanos. Esta foi a luta do Pai, que lhe custou 14 anos de exílio. Um pensar, amar e viver orgânico, que compreenda e viva a harmonia do organismo natural e sobrenatural de vinculações querido por Deus. Estamos dispostos a lutar por isso? Hoje, em muitas partes, a Igreja vive uma crise causada por abusos cometidos por pastores, que fracassaram em sua missão paternal. Em outras palavras, a crise de abuso é uma crise de paternidade. Além disso, algumas ideologias que a sociedade atual tenta nos impor – como ideologia de gênero, por exemplo – surgem de uma miopia antropológica, que distorce o plano de Deus para o homem, a mulher, a família e não compreende o papel do pai e da mãe, nem a importância de ser filhos. Mais do que nunca, o Espírito quer presentear hoje para a Igreja dons de paternidade, maternidade e filialidade, dons de família, que – graças à Mãe e a ação do Espírito – são abundantes em nosso Movimento.
Pedagogia, piedade e paternidade. Três capítulos da carta que Cristo, pelo Espírito, gravou no coração do Pai, e quer gravar a sangue e fogo em nossos corações como filhos de Kentenich. Esta carta está escrita para hoje, para ser lida e vivida neste convulsionado tempo social e eclesial. Por isso, se me permitem abusar um pouco mais da sua paciência, não queria concluir essa reflexão sem falar do contexto em que devemos ler e ser essa “carta de apresentação” do Padre Kentenich: a Igreja nos tempos do Papa Francisco. E mencionar, assim, com que atitude creio que devemos entregar essas contribuições, que a Igreja e o mundo esperam de nós.
A Igreja vive um tempo de reforma, a pedido dos mesmos cardeais no último conclave. Francisco fala de “uma inadiável renovação eclesial” (EG 27-33). No entanto, as maiores oposições à reforma vem de dentro da própria Igreja, seja pelos pecados que cometemos e pela dificuldade em enfrentá-los (como ante o tema dos abusos, por exemplo), seja pela resistência a uma pastoral “em saída”, dirigida ao homem de hoje, que – sem negar de forma alguma os princípios dogmáticos e o ideal cristão – se ocupa da vida real, a partir da misericórdia e do amor evangélicos ensinados por Jesus (como no caso dos divorciados ou migrantes, por exemplo). (Soube, por exemplo, de uma comunidade religiosa que rezava para que o pontificado atual fosse breve…)
Aqueles que viveram o funeral do Pai se recordarão certamente também das reformas provocadas pelo Concílio Vaticano II e do conturbado período pós-conciliar. Naquele momento, atento às vozes do tempo, o Padre Kentenich não pôde deixar de se pronunciar e dar critérios que permanecem hoje válidos em tempos de renovação eclesial. Cito apenas a reflexão que ele fez em uma homilia, de 15 de novembro de 1964, quando o Concílio não havia sequer terminado. Tipificando, ele identifica “no concílio e também no âmbito geral da Igreja, a existência de uma tendência progressista e de outra conservadora”. Os progressistas diziam que “o que foi mudado é muito pouco” e os conservadores não entendiam “para que tantas mudanças!”, pois “o antigo era bom o suficiente; o que fez meus pais e meus avós felizes também pode me fazer feliz “, alegavam. O Padre Kentenich respeita as opiniões das duas correntes, mas sua posição não é nem progressiva nem conservadora. Eu a defino como “eclesial”, ou, mais claramente ainda, como “integral”.
“Se a Igreja quer voltar a ser a alma do mundo de hoje, ser forma vital, princípio vital do mundo de hoje, então no fundo não pode ser só uma relíquia de antiquíssimas concepções, que correspondiam bem àquela época, mas que praticamente nada têm a dizer ao homem atual. Devemos aceitar as mudanças em benefício da grande missão da Igreja e também em benefício da missão que cada um tem em particular. Devemos atualizar a Igreja, enquanto esta tem hoje uma missão” (PK, 15/11/1964).
Em face das polarizações – conservadores vs. progressistas, direita vs. esquerda, moral da vida / “pró-vida” e “pró-família” vs. moral social / “pró-pobre” e “Doutrina pró-social da Igreja”, rigorismo vs. laxismo, Ratzinger vs. Francisco – a sabedoria cristã busca “equilíbrio” (“in medio virtus”), visto que os extremismos tendem a uma visão distorcida da realidade, que superestima algumas coisas e subestima outras. O pensamento cristão, integral, Kentenichiano e orgânico, procura um equilíbrio ponderado antes das polarizações, busca que as tensões sejam criadoras e não destrutivas. E, de fato, assim nosso Movimento é visto por muitos na Igreja universal. Mas não se trata de um equilíbrio neutro, um centro “morno” (que o Senhor “vomitaria” segundo o Apocalipse 3, 15-16), apático, não comprometida com intenções válidas de ambos os extremos, mas uma integralidade capaz de abraçar com perseverança e coragem (com hypomoné e parresia, diria Francisco) o desejo de bem e verdade que existe em ambos os lados. Uma integralidade que respeita certas “unilateralidades orgânicas”, mas as vê sempre dentro do todo, do organismo completo, em tensão criadora. O equilíbrio está no centro não porque descarta os polos, mas porque abrange os dois lados, com aquele “e” orgânico (et-et), católico, que o Pai nos ensinou. Por isso o adjetivo “integral” é tão importante para a Doutrina Social da Igreja. (Coincidentemente, os seguidores fiéis de Kentenich, nos duros tempos de luta, foram chamados de “integrais”).
Creio que o Pai espera de nós, seus filhos, essa postura integral, equilibrada, que colabora na “conversão pastoral” à qual convoca o Papa Francisco e oferece à Igreja o carisma do Pai: a Fé Prática, a Aliança com Maria, a consciência de missão, vividas em múltiplas dimensões de nossa vida, mas, em particular, pelo cultivo da paternidade, da piedade e da pedagogia marianas.
Hoje a Igreja necessita que sigamos “desenterrando” o Padre Kentenich, que o ajudemos a permanecer “em saída”. Nós só faremos isso se o encarnarmos em nossa vida. Nós, como Família, juntos, como os dois anjinhos da tumba de São Bonifácio. Como nos recordava o Pe. Juan Pablo Catoggio no início deste ano jubilar: “Kentenich é mais do que todos nós e nos supera, ninguém o esgota. Somente todos juntos podemos e devemos fazer presente todo o rosto completo, toda sua figura em plenitude” (15/09/2017). Tive a graça de viver essa experiência nos vários anos como Diretor do Movimento no Brasil. Uma experiência que recordo com alegria e nostalgia, e que me serve muito para o meu atual trabalho.
Quis a Providência que, 50 anos após a morte do Pai, seu filho, um filho seu, um filho da Aliança de Amor com Maria, fosse chamado em um dia 31 de maio – o dia da proclamação da nossa missão como Família – para servir à Igreja no novo “Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida”, criado pelo Papa Francisco como parte da reforma da Cúria Romana. Creio que é por esse motivo que me convidaram para falar-lhes e vocês tiveram que aguentar essa longa homilia hoje. Com “medo e tremor”, há um ano comecei meu trabalho. É um Dicastério que tem “tudo a ver” com Schoenstatt, porque é o lugar onde a Igreja universal acompanha os movimentos eclesiais e as associações internacionais de fiéis, acompanha a formação de líderes leigos para a Igreja e a sociedade, mostrando a solicitude especial da Igreja pelas famílias e a juventude. Como podem ver, todos são temas muito “nossos”. E por isso conto com suas orações e agradeço a colaboração de toda a Família de Schoenstatt.
Como estamos em Família, queria compartilhar com vocês algumas das minhas primeiras impressões. Devo dizer que, trabalhando no Dicastério, fiquei impressionado com a riqueza dos carismas na Igreja, o entusiasmo de tantas comunidades, novas e antigas, e o ardor de tantos missionários, leigos e religiosos. Eu tenho – e acredito que, como Movimento, temos – muito a aprender com os outros carismas dentro da Igreja. Mas percebo também o lugar e a importância de Schoenstatt – isto é, do carisma do Pai – como complemento fundamental para a Igreja e a sociedade de hoje.
Sigamos trabalhando juntos. A federatividade de Schoenstatt, querida pelo Pai, é única na Igreja. E creio que, internamente, é o principal desafio que devemos enfrentar e a condição para que possamos dar nossa contribuição. “Somos como as pequenas pedras de um mosaico, que só juntas mostram o todo”, nos dizia o Pe. Juan Pablo. “O grande desafio é que nos abramos uns aos outros, que intercambiemos a vida, que trabalhemos juntos, que vivamos solidariedade efetiva, cultura de aliança. O mosaico é como um difícil e exigente enigma que devemos montar. Só assim representamos integralmente o Padre Kentenich” (15/09/2017). Creio sinceramente que esse mosaico com a face do Pai é a capa, a capa do livro de nossas vidas. Sim, da vida de todos nós, porque Deus desde sempre nos pensou juntos, como um único livro! Só assim a vida do Pai – o livro de sua vida – viverá na Igreja para que seu carisma de Fundador – sua pedagogia, sua piedade, sua paternidade marianas – contribua para a transformação do homem e do mundo de hoje. Continuemos escrevendo juntos este livro para que a imagem do Pai possa aparecer cada vez mais viva e clara nos próximos 50 anos de nossa história.
Pe. Alexandre Awi Mello, ISch