Em tempos de pandemia, o respeito e a misericórdia se tornam ainda mais essenciais na vida diária
Ana Paula Paiva – Três são as virtudes teologais, assim chamadas porque nos inclinam diretamente a Deus: fé, esperança e caridade. Dentre elas, sabemos pelo Apóstolo São Paulo, a caridade é a maior. A mais completa e que mais nos dignifica e eleva. A caridade dá a própria forma e significado para a fé e a esperança e sua atuação em nossa vida redunda na própria ação do Espírito Santo em nós (São Tomás de Aquino nos diz que, em última instância, é o Espírito Santo dado e enviado, que possibilita a inabitação [1] em Ir. Elisabete da Trindade. Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, 2012, disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/5855/1/438771.pdf)
de Deus em nós, provocando seus efeitos interiores e exteriores, e inspirando toda a dinâmica de nossa vida espiritual).
Em outras palavras, amamos a Deus e amamos a Deus que se encontra em cada um daqueles com os quais me encontro – como amamos a nós mesmos (por amor a Deus). É o Deus da vida que me inclina à Ele e que me conduz, a partir do exercício da caridade, a amá-Lo no irmão. Seus frutos interiores são a paz, a alegria e a misericórdia.
Transparecer a misericórdia
Agir com misericórdia com nosso irmão é cumprir um dos mais importantes preceitos do viver cristão, portanto. Somos chamados a transparecer a misericórdia de Deus na vida do outro, assim como nos diz o Evangelho: “Não julgueis e não sereis julgados. Pois o mesmo julgamento com que julgardes os outros servirá para vós; e a mesma medida que usardes para os outros servirá para vós. Por que observas o cisco no olho do teu irmão e não reparas na trave que está no teu próprio olho?” (Mt 7,1-3).
Evidentemente, é importante ressaltar que não se trata de, em nome da misericórdia, tratar os outros (e a si mesmo) de maneira condescendente ou relativista. Não se trata, também, de ignorar o pecado ou coadunar com práticas imorais. Santo Afonso Maria de Ligório disse, certa vez, que a noção equivocada da misericórdia de Deus leva mais gente ao inferno do que o próprio diabo. Forte, não? Isso significa que a compreensão da misericórdia de Deus (que é infinita) não deve caminhar afastada da virtude, do sincero arrependimento e da busca constante pela santidade. Buscar o céu exige se afastar do vício e da maldade. Nosso fundador, Pe. José Kentenich, sempre muitíssimo consciente dessas questões, ressalta que o movimento de nossa alma é sempre constante no sentido de aproximar-se de Deus e afastar-se, portanto, e para tanto, do que é contrário a Deus ou do que não é de Deus.
Não julgar mas, sim, ajudar a elevar
A prática da caridade para com nosso irmão consiste, portanto, em evitar o julgamento de seus atos, suas tendências, as decisões que toma em sua vida. O que não significa indiferença ou falsas noções de tolerância. Evitar o julgamento significa não medir o outro com a sua própria régua, ou seja, não implicar à vida alheia contextos, circunstâncias e elementos que não lhe pertencem. É, evidentemente, elevá-lo (as vezes pelo exemplo, outras pelo conselho, conforme a posição que ocupamos em sua vida), mas nunca determiná-lo como uma castração de sua própria liberdade de filho de Deus.
Muitas vezes apontamos como um anacronismo, situações em que nos sentimos julgados. “Não podem fazer isso conosco!”, nós dizemos (muitas das vezes, com razão). Mas não utilizamos o mesmo critério com o outro. Não podemos analisar, isoladamente, situações que não vivenciamos, sem trazer seus contextos, seus elementos históricos, as mazelas do tempo e do espírito, que motivaram posturas alheias. Fazer isso não conduz à virtude, mas apenas afasta nosso irmão, e nós mesmos, de Deus.
O respeito ante a realidade do outro
Por isso que, em Schoenstatt, valorizamos tanto o espírito comunitário quanto o sadio exame de consciência e os demais meios ascéticos que instrumentalizam a busca por nossa santidade da vida diária. Somos convidados a experimentar o amor Deus em comunidade, a criar vínculos, a vivenciar nossa pedagogia, mas também a buscar a magnanimidade e a preservar a intimidade livre da relação do outro com Deus.
Uma das práticas possíveis para o exercício da caridade é o respeito ao que se passou com o outro (seus processos, suas angústias, seu caminho de santidade, seus pesares, as injustiças que recaíram sobre ele, os pecados que o assombram), e é por isso que o julgamento e a fofoca são tão prejudiciais, embora possuam uma aparência insignificante e quase “inocente”: elas são perniciosas e nos tornam incapazes para a caridade.
Busquemos, com amadurecimento e entusiasmo, nossos ideais em nossa vida prática. Busquemos, sobretudo, amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. O desafio é imenso e nossa carne fraca: peçamos que Maria nos eduque e nos ensine a abandonar o homem velho para nos revestir do homem novo, consciente de nossa pequenez e verdadeiramente caridosos.
[1] O termo “inabitação” traduz a ideia da presença amorosa de Deus, do intenso e vivificante estar de Deus na pessoa humana. Constitui a forma de presença mais profunda no sentido da personalização da relação de Deus com o ser humano no mundo. O conceito teológico da Inabitação enuncia o modo específico do cristão se relacionar com a Trindade. É a presença de Deus Pai, Filho e Espírito Santo no crente. Deus torna-o participante da vida divina trinitária em um intercâmbio de entrega mútua. É o próprio Deus que se comunica à criatura (Fonte: GUARNIERI, Irma. O Mistério da Inabitação Divina em Ir. Elisabete da Trindade. Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, 2012, disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/5855/1/438771.pdf)