Uma reflexão da área de “Família e Vida” do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida em relação à situação de fim de vida, a partir do mais recente Magistério do Papa Francisco
“Ao homem pedirei contas da vida do seu irmão” (Gn 9, 5). A vida de cada um de nós é uma questão que diz respeito a todos. É uma questão que ninguém pode ignorar, porque é o próprio Deus que a faz no pacto de aliança com o homem. Cuidar, importar-se com a vida de quem está do nosso lado não é uma escolha de poucos, mas é tarefa de todos, é a responsabilidade comum que devemos ter em conta na sociedade humana e, em última instância, face ao Mistério do qual viemos e ao qual nos destinamos.
Entramos no mundo por meio de uma família de sangue, que foi quem primeiro cuidou de nós, mas permanecemos no mundo numa “família social”, onde cada um é pai e mãe, irmão e irmã na vida quotidiana. Uma vida concreta, que é partilha de espaços físicos, relações, afetos, amizades, pensamentos, planos e interesses. O cuidado é uma exigência da partilha de vida, e a partilha da vida nasce do cuidado que temos para com ela. Sem esse cuidado com a nossa vida e com a dos outros, fica só a “estranheza”, a miserável condição de ser “estranhos” uns para os outros.
Nascer e morrer como “estranhos da vida” é a coisa mais triste que o homem pode experimentar na terra. O primeiro direito de cidadania é o da “cidadania humana”, de participar da comunidade dos homens e mulheres que se reconhecem a vida um do outro como um bem para si próprios e para todos, um bem que deve ser preservado, promovido e protegido. E um bem reconhecido e partilhado é sempre um direito inalienável.
A morte é parte da vida terrena e porta da vida eterna. Se temos em comum a vida temporal, nem por isso nos é estranha a vida eterna. Cuidar do último trecho de estrada na terra, aquele trecho que nos aproxima da entrada da vida eterna, é um dever para conosco e para com os outros. Um dever comum que nasce do primeiro dos bens comuns, que é a vida.
Recentemente, o Papa Francisco recordou-nos que “A vida é um direito, não a morte, que deve ser acolhida, não administrada. E este princípio ético diz respeito a todos, e não apenas aos cristãos ou fiéis” (Audiência geral, 9 de fevereiro de 2022). Não se trata de reivindicar na sociedade e em meio aos ordenamentos jurídicos o espaço de uma norma moral fundada na Palavra de Deus e incessantemente afirmada na história da Igreja; a questão aqui é reconhecer uma evidência ética acessível à razão prática, que percebe o bem da vida da pessoa como um bem comum, sempre. A “carta da cidadania humana” – gravada na consciência de todos, independentemente da sua fé – contempla a acolhida da morte, tanto a própria como a dos outros, mas exclui a hipótese de, por qualquer razão, provocá-la, acelerá-la ou prolongá-la.
As palavras do Papa Francisco evocam as do seu predecessor, São João Paulo II, que escrevia: “A questão da vida e da sua defesa e promoção não é prerrogativa unicamente dos cristãos. Mesmo se recebe uma luz e força extraordinária da fé, aquela pertence a cada consciência humana que aspira pela verdade e vive atenta e apreensiva pela sorte da humanidade. Na vida, existe seguramente um valor sagrado e religioso, mas de modo algum este interpela apenas os crentes: trata-se, com efeito, de um valor que todo o ser humano pode enxergar, mesmo com a luz da razão, e, por isso, diz necessariamente respeito a todos” (Carta encíclica Evangelium vitae, n. 101).
A via dos “cuidados paliativos” parece ser uma solução boa e desejável para aliviar da dor a vida dos enfermos que não podem ser curados pelos protocolos terapêuticos atuais, ou daqueles que veem aproximar-se o fim da sua vida terrena; é necessário, entretanto, dissipar um mal-entendido, que risca de veicular, através de um auxílio a uma morte pacífica, um deslize em direção à ‘administração da morte’. É ainda o Santo Padre que salienta este perigo. “Aquela frase do povo fiel de Deus, das pessoas simples: ‘Deixai-o morrer em paz’, ‘ajudai-o a morrer em paz’: quanta sabedoria! Contudo, devemos ter o cuidado de não confundir esta ajuda com desvios inaceitáveis que levam a matar. Devemos acompanhar as pessoas até à morte, mas não provocar a morte nem ajudar qualquer forma de suicídio” (Audiência geral, 9 de fevereiro de 2022).
O suicídio medicamente assistido e a eutanásia não são formas de solidariedade social nem de caridade cristã, e a promoção destes não é uma difusão da cultura do cuidado de saúde nem da piedade humana. Bem diferentes são os caminhos da medicina dos incuráveis e do estar próximo daqueles que sofrem ou que esperam a morte. É como o caminho que vai de Jerusalém a Jericó, percorrida pelo samaritano que cuidou do homem ferido. Não o abandonou ao seu fatídico destino, mas esteve próximo dele e aliviou tanto quanto pôde a dor das suas feridas. Sempre se pode acompanhar alguém para a meta última da sua vida com discrição e amor, como tantas famílias, amigos, médicos e enfermeiros souberam fazer no passado e continuam a fazê-lo hoje. Sem ferramentas de morte, mas com a ciência e a sabedoria da vida.
Fonte: laityfamilylife.va