Continuação do estudo sobre Amoris Laetitia
Flavia Ghelardi – No terceiro capítulo da exortação apostólica Amoris Laetitia, o Papa Francisco faz uma síntese da Doutrina da Igreja sobre o matrimônio e a família, sempre com um olhar de amor e ternura, lembrando que Jesus nos acompanha nesse compromisso de viver e transmitir o Evangelho da família.
Jesus recupera e realiza plenamente o projeto divino
O matrimônio é um dom divino e Jesus reafirma que essa união deve ser indissolúvel. “A indissolubilidade do matrimônio (“o que Deus uniu não o separe o homem”: Mt 19, 6) não se deve entender primariamente como “jugo” imposto aos homens, mas como um “dom” concedido às pessoas unidas em matrimônio”. (AL 62) É dom porque o amor verdadeiro não tem “prazo de validade” e precisa desse compromisso assumido por toda a vida para poder crescer e dar fruto. O matrimônio deve ser aqui na terra um reflexo, um ícone, do amor divino, assim também recebe as graças necessárias, através da Igreja, para cumprir essa missão.
Em vários momentos no Novo Testamento, iniciando pela Encarnação do Verbo no seio de uma família, Jesus demonstra seu apreço e cuidado com a família, como seu primeiro milagre sendo realizado num casamento, ou os momentos de convivência na família de Lázaro, Maria e Marta.
«A aliança de amor e fidelidade, vivida pela Sagrada Família de Nazaré, ilumina o princípio que dá forma a cada família e a torna capaz de enfrentar melhor as vicissitudes da vida e da história. Sobre este fundamento, cada família, mesmo na sua fragilidade, pode tornar-se uma luz na escuridão do mundo.” (AL 66)
A família nos documentos da Igreja
A Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II, definiu o matrimônio como uma comunidade de vida e de amor, afirmando que o verdadeiro amor entre marido e mulher implica numa mútua doação de si mesmo, em todos os aspectos da vida.
- Paulo VI, em sua Encíclica Humanae Vitae trata da dignidade da vida humana e da relação inseparável entre o amor conjugal e a procriação. “O exercício responsável da paternidade implica, portanto, que os cônjuges reconheçam plenamente os próprios deveres para com Deus, para consigo próprios, para com a família e para com a sociedade, numa justa hierarquia de valores” (HV 10). De acordo com essa encíclica, o casal só pode espaçar os nascimentos utilizando-se de métodos naturais caso possuam motivos justos para isso.
- João Paulo II dedicou atenção especial às famílias, primeiramente com sua série de catequeses sobre o amor humano, hoje denominada de Teologia do Corpo, depois com a Carta às Famílias “Gratissimam sane e sobretudo com a Exortação apostólica Familiaris consortio. Nestes documentos, o Pontífice definiu a família « caminho da Igreja »; ofereceu uma visão de conjunto sobre a vocação ao amor do homem e da mulher; propôs as linhas fundamentais para a pastoral da família e para a presença da família na sociedade. Concretamente, ao tratar da caridade conjugal (cf. FC 13), descreveu o modo como os cônjuges, no seu amor mútuo, recebem o dom do Espírito de Cristo e vivem a sua vocação à santidade » (AL 69)
Bento XVI, em sua encíclica “Deus caritas est” sublinha que “o matrimônio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice- -versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano” (DC 11)
O sacramento do matrimônio
A família é imagem de Deus, que é comunhão de pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. “Na família humana, reunida em Cristo, é restaurada a “imagem e semelhança” da Santíssima Trindade (cf. Gn 1, 26), mistério donde brota todo o amor verdadeiro. O matrimônio e a família recebem de Cristo, através da Igreja, a graça para testemunhar o Evangelho do amor de Deus». (AL 71)
O Papa Francisco explica que o sacramento do matrimônio não é um rito social e vazio, mas uma graça para a santificação e salvação dos esposos, pois é a representação real do amor entre Cristo e sua Igreja. “Os esposos são, portanto, para a Igreja a lembrança permanente daquilo que aconteceu na cruz; são um para o outro, e para os filhos, testemunhas da salvação, da qual o sacramento os faz participar». (AL 72)
No momento da recepção do sacramento, os ministros são os próprios noivos e o sacerdote é uma testemunha qualificada para este ato e as promessas feitas um ao outro são de uma entrega total, fidelidade e abertura à vida. Através do sacramento, o próprio Cristo vem ao encontro dos esposos, para auxiliar nessa missão assumida.
“Quando se unem numa só carne representam o casamento do Filho de Deus com a natureza humana.” Como é profunda essa realidade e como cada casal deveria vivê-la conscientemente!
Sementes do Verbo e situações imperfeitas
Neste tópico o Santo Padre ensina que mesmo em culturas diferentes devemos tentar enxergar as “sementes do Verbo”, as sementes de Cristo. “Podemos dizer que «toda a pessoa que deseja formar, neste mundo, uma família que ensine os filhos a alegrar-se por cada ação que se proponha vencer o mal – uma família que mostre que o Espírito está vivo e operante – encontrará gratidão e estima, independentemente do povo, região ou religião a que pertença ». (AL 77)
A Igreja também tem um cuidado pastoral com aqueles que apenas vivem juntos, são casados só no civil ou são divorciados e voltaram a se casar. “Na perspectiva da pedagogia divina, a Igreja olha com amor para aqueles que participam de modo imperfeito na vida dela: com eles, invoca a graça da conversão; encoraja-os a fazerem o bem, a cuidarem com amor um do outro e colocarem-se ao serviço da comunidade onde vivem e trabalham.” (AL 78)
No caso de uma união civil onde não há impedimento para a recepção do sacramento, o casal deve ser encorajado a regularizar essa situação, sendo informado de todas as graças oriundas do sacramento.
Nos demais casos, os sacerdotes são exortados, por amor à verdade, a discernir bem as situações (FC 84). Ao mesmo tempo que a Igreja deve exprimir com clareza a sua doutrina, especialmente os motivos que a levam a defender essa doutrina, é muito importante a análise e o acompanhamento de cada caso concreto, devendo ter-se em conta ao modo como as pessoas vivem e sofrem por sua situação irregular.
A transmissão da vida e educação dos filhos
A união matrimonial está ordenada para a geração de filhos por sua própria natureza, porém o casal a quem Deus não concedeu a graça de ter filhos pode ter uma vida conjugal repleta de sentido (CIC 2360).
Cada bebê que chega surge da profundidade do amor mútuo entre os esposos, não é algo que vem de fora, pois é seu fruto e complemento. “Desde o início, o amor rejeita qualquer impulso para se fechar em si mesmo, e abre-se a uma fecundidade que o prolonga para além da sua própria existência. Assim, nenhum ato sexual dos esposos pode negar este significado, embora, por várias razões, nem sempre possa efetivamente gerar uma nova vida.” (AL 80)
O Santo Padre alerta para uma mentalidade egoísta que reduz a geração de uma nova vida aos projetos individuais do casal. Ele ressalta que por ser a família um “santuário da vida” é extremamente contraditório fazer dela um lugar onde a vida é negada (através dos métodos contraceptivos) e destruída (através do aborto).
O Papa ressalta ainda que a educação dos filhos é um “dever gravíssimo” e um “direito primário” dos pais, sendo o Estado ou qualquer outra instituição, tem apenas um papel subsidiário, de apoio e jamais pode impor algum tipo de educação que seja contrária à vontade dos pais. (AL 84) O papel da Igreja é colaborar com os pais, “ajudando-os a valorizar a sua função específica e a reconhecer que quantos recebem o sacramento do matrimônio são transformados em verdadeiros ministros educativos, pois, quando formam os seus filhos, edificam a Igreja e, fazendo-o, aceitam uma vocação que Deus lhes propõe.” (AL 85)
A família e a Igreja
“Com íntima alegria e profunda consolação, a Igreja olha para as famílias que permanecem fiéis aos ensinamentos do Evangelho, agradecendo-lhes pelo testemunho que dão e encorajando-as. Com efeito, graças a elas, torna-se credível a beleza do matrimônio indissolúvel e fiel para sempre”. (AL 86)
O Santo Padre encerra esse capítulo reafirmando o papel importantíssimo da família para a vida da Igreja, ressaltando que a Igreja é um bem para a família e a família é um bem para a Igreja.
Para refletir:
- Como está minha convicção de que o matrimônio é um sacramento indissolúvel? Será que direta ou indiretamente posso estar apoiando o divórcio ou uma segunda união? Para reafirmar essa convicção, uma sugestão é ler o que o Catecismo da Igreja Católica explica sobre a indissolubilidade do matrimônio (parágrafos 1638 a 1658)
- Tenho a consciência de que os filhos são bênçãos de Deus e não um mal que precisa ser “evitado”? Assumo o papel principal na educação dos meus filhos ou tenho delegado essa missão para a escola ou para terceiros?