Ou, melhor ainda: temos refletido a imagem de Cristo em meio à folia?
Guilherme e Ana Paula Paiva – E o carnaval chegou! Por todo lado vemos folia, danças típicas e blocos de rua. Nosso país é invadido por turistas, todos os telejornais registram as últimas novidades nas fantasias de carnaval e os percursos dos abadás mais famosos de Salvador. As escolas de samba fazem seus desfiles, com carros alegóricos e milhares de foliões fiéis à escola e aos enredos, e a tensão para avaliar os concorrentes segue cada vez mais artisticamente criteriosa.
O carnaval tem origem em uma festa pagã: há desenhos gregos que relatam festa com música e cortejo com carros, que exaltam o deus Dionísio – a intenção era a de prepara-se para o tempo seguinte, apagando-se as culpas do tempo anterior. Há alguns relatos de que havia confissão generalizada de vícios e de culpas, tal como demonstra Arlequim, que antes de ser morto por seus erros, os confessa a todos (e também a de todos os outros).
Essa tradição não foi apagada pelo cristianismo, mas de alguma maneira ressignificada, colocando o carnaval (há diversas interpretações, mas a mais corrente é que a palavra carnaval significa adeus carne – carne vale) como uma celebração cultural (não litúrgica, contudo) de preparação para o jejum realizado na quaresma e o início das reflexões sobre a Paixão de Jesus.
Suas origens gregas nos lembram bem as escolas de samba e seus desfiles em carros alegóricos. Os enredos seguem sendo cada vez mais politizados e buscando desmascarar culpas de ameaças ao meio ambiente, de má gestão política ou enaltecer a vida de pessoas públicas e determinado contexto histórico. Não existe apenas a preocupação artística, mas sim – e talvez especialmente – a tentativa de emplacar uma narrativa social e política.
Mas, e quando esses discursos são uma afronta à nossa fé ou crença?
É filosoficamente relevante perceber que nossa cultura (mundial) caminha para uma preocupação politizada, cada vez maior, com a crença de diversos grupos religiosos (o que é bom), ao passo que o catolicismo segue sendo, também em maior escala, publicamente desmoralizado e relegado ao passado (o que é péssimo) – uma contradição absurda, visto que também somos uma religião e nosso país segue sendo um dos mais católicos do mundo. As afrontas seguem em tons quase violentos e as injúrias não são meros aborrecimentos particulares, senão um sério atentado à nossa fé e ao nosso Deus.
Arriscamos dizer que qualquer escola de samba que, hoje, expusesse um enredo contra as religiões de etnias indígenas ou de matiz africana, seria seriamente punida (e deveria mesmo sê-lo!), mas o mesmo acontece se é nosso Deus, que é simbolizado numa crucificação (ou demais cenas bíblicas), teatralmente absurda, cujo único propósito é emplacar a narrativa de que o cristianismo nada fez de bom? Nesse caso temos a tal “liberdade de expressão” – um direito constitucional de interpretação lacunosa e de difícil verificação, mas a muleta que sustenta o uso da arte.
Hoje, contudo, queremos mudar o tom do nosso questionamento, sem esquecer de que tudo que foi dito acima é, realmente, uma triste realidade e nos impõe, sem dúvida, medidas jurídicas de contenção.
Mas poderíamos nos perguntar: como é nossa coerência – entre o que acreditamos e o que vivemos diariamente? Se – como lembra São Francisco de Assis – fôssemos o único Evangelho que pudesse ser lido pelas pessoas (através de nossa vida e não de folhas de papel), o que estaria aí escrito? Estamos dando testemunho de que os cristãos são diferentes não apenas porque creem, mas justamente porque creem – diferentes no agir, no vestir, no falar, no pensar e no amar?
A alegria da festa de carnaval não é, em si mesma, um mal. As situações e ocasiões de pecado, sim. O carnaval não é a única oportunidade de que se vale a arte para comunicar intenções (ainda que, para nós, as expressões artísticas devam ser o resquício belo da verdadeira Beleza / para falar sobre a beleza necessitaríamos de um outro texto) – mas isso também não justifica a afronta, o abuso e a injúria. Não queremos soar relativistas, mas justamente o contrário: somos inteiros em todo lugar?
O que nossa vida tem mostrado a respeito do cristianismo? Qual a minha postura, concreta e diária, que marca a minha atuação cristã e católica em meio ao mundo? Estampamos nossa medalha da Aliança de Amor no peito (e devemos mesmo fazer isso), mas essa Aliança de Amor também está marcada – em fogo que queima por Cristo – em nossa alma? Somos referência de vida católica por onde passamos, ou, por medo da perseguição, vamos nos escondendo cada vez mais nas catacumbas culturais?
Veja, registramos, não se trata de uma vida soberba e de vanglória por sermos católicos – Deus sabe o quão numerosos são nossos pecados –, mas sim de nos perguntar qual o testemunho que estamos dando sobre o que é ser católico e qual a forma com que expressamos nossa espiritualidade em nossa vida real. Também não se trata de carregar a moralidade ou confundi-la com moralismos (na grande maioria, vazios de significado pessoal), mas se ser católico é decidir-se por Cristo, renunciando muito e recebendo também muito, tenho me apresentado com a alegria verdadeira de ser filho de Deus, com a soberba por portar a verdade, com a máscara da religiosidade relegada apenas aos finais de semana de encontro (?) Quem sou eu – Filho de Deus ou mero Arlequim?
Que esse tempo de carnaval seja, de fato, favorável para o início de nossa quaresma e que atendamos o clamor de Deus por nossa conversão. Que tenhamos discernimento para defender nossa fé e a graça de combater, com firmeza e retidão, o excesso mal-intencionado contra nós, mas que tenhamos também mais do que apenas o discurso: que nossa vida seja um “faça-se criador” e que nossa fidelidade seja estampada não em uma fantasia, mas em nosso coração.
Foto: Karen Bueno