A fraternidade entre as religiões é o testemunho de que Deus é Pai de todos
Karen Bueno – O livro “Uma vida à Beira do Vulcão”, narrativa sobre a história do Pe. José Kentenich, traz uma síntese e, ao mesmo tempo, muitas situações interessantes que ele viveu. Ao longo do quinto capítulo, o relato de uma mulher – esposa e mãe – é uma das coisas que mais chama a atenção. Ela não era católica, ela estava sem apoio algum de qualquer pessoa e se via diante de uma decisão muito importante que poderia salvar toda sua família: ela teria de se matar. Vale a pena ler o relato dela própria no livro, mas, para explicar o contexto, veja um resumo da história:
Em janeiro de 1939, a Sra. Marie Kahle pega uma bicicleta e percorre quilômetros, de Bonn até Schoenstatt, para encontrar-se com o Pe. José Kentenich. Ela se encontra pálida, exausta e desesperada. E não é para menos: nos últimos meses, a vida de toda sua família tornou-se um grande purgatório.
Marie tem cinco filhos e é casada com o professor universitário Paul Kahle, um renomado orientalista e perito em história da arte na Universidade de Bonn/Alemanha. A família toda não é católica, eles frequentam uma igreja protestante, porém, têm muita estima pelo Pe. Kentenich e viam os sacerdotes como “bons amigos”.
O que aconteceu com eles?
No encontro com o Pe. Kentenich, Marie desabafa e conta sobre a situação atual de sua família. Ela, o marido e os filhos, como cristãos convictos, não aderiram ao partido nazista e continuaram sendo amigos dos judeus da vizinhança e dos colegas de trabalho judeus. Antes da conhecida “Noite dos Cristais”, seus filhos tentaram avisar os comerciantes judeus que eles seriam atacados, mas chegaram tarde. No dia seguinte, os meninos ajudaram esses comerciantes a organizar tudo o que fora destruído nas lojas.
Ao mesmo tempo, Marie e seu filho Wilhelm foram visitar a Sra. Goldstein, uma judia idosa amiga deles, para consolá-la. Foi então que um policial os viu e os denunciou à polícia nazista. A partir daí começou o tormento dessa família.
Por quanto tempo os suportaremos?
Um retalho de jornal trazia a seguinte notícia: “É uma traição ao povo a senhora Kahle e seus filhos terem ajudado a judia Goldstein nos trabalhos de arrumação… A população de Bonn, ferida em seus sentimentos sinceros e puros, está estupefata com tal maldade”. Durante a noite, as patrulhas nazistas passavam várias vezes na frente da casa da família Kahle e, certa vez, os agentes quebraram as janelas da residência. Isso era só o começo.
Os filhos mais novos de Marie começaram a apanhar dos colegas na escola, porque, eles argumentavam, “sua mãe pecou contra o sangue alemão”. Os dois mais velhos foram expulsos da universidade e perderam todos os créditos adquiridos. A família recebeu cerca de 20 telefonemas dizendo que Marie e o filho Wilhelm deveriam morrer, que seriam torturados e a casa destruída. O marido, Sr. Paul, foi demitido do emprego e proibido de entrar no prédio da universidade. A casa da família foi atacada com pedras e pichada com a frase: “Aqui mora um traidor do povo, amigo dos judeus”. Pelo bairro foram espalhados cartazes que diziam: “A senhora Kahle e seu filho dizem que são cidadãos de Bonn. Por quanto tempo os suportaremos?”
Mãe e filho foram então convocados para depor e tiveram sorte, pois conheciam os oficiais: eles sabiam que os Kahle ajudavam todas as pessoas, independentemente de crença, religião ou origem. Mas os problemas não pararam aí. A família foi isolada de todos os círculos sociais: o marido foi expulso do grupo de diálogo do clube; a empregada se demitiu; a moça que entregava o leite teve de parar, depois de ser censurada, pois “traidores devem morrer de fome”; a costureira não fazia mais roupas para os Kahle, porque o filho dela não permitia que trabalhasse para essa família. Eles foram obrigados a se isolar e somente saíam à rua durante a noite, por medo.
Há apenas um jeito de salvar sua família
Um amigo da família Kahle e nazista convicto, o neurologista Aigner, contou a eles sobre a existência de um tribunal secreto nazista que, ao contrário do tribunal oficial, julgava casos internamente. A estratégia deste órgão era eliminar sistematicamente certas pessoas e famílias através de humilhações, ameaças e até tortura e assassinato. “Depois de termos abalado suficientemente os nervos da pessoa em questão, ocupamo-nos com a família, um membro da família depois do outro”, ele disse. Esse médico descreveu os horrores que aconteciam e depois disse a Marie: “Em todo caso, para a senhora não há salvação, com toda a certeza. Mas pode possibilitar a salvação de sua família, também com toda certeza”.
Ela perguntou ao médico como isso era possível, como poderia salvar sua família. Ele respondeu contando o exemplo de várias mulheres que se suicidaram e, justamente por isso, conseguiram evitar um final trágico para suas famílias. O neurologista lhe entregou, então, uma receita médica para comprar substâncias capazes de causar suicídio.
É meu dever me suicidar para salvar minha família?
É nesse contexto que Marie e o filho Wilhelm chegam a Schoenstatt e se veem diante do Pe. José Kentenich. O fundador ouviu-os com atenção e sabia como a decisão dela era complicada. Ele ouve de Marie a pergunta: “É meu dever me suicidar para salvar minha família?”
Pe. Kentenich ficou em silêncio por bastante tempo, depois lhe disse: “Não, não cometa suicídio! É melhor vir para cá. Venha, eu a admito formalmente na minha comunidade de irmãs e cuido que a levem com outro nome para a Suíça… Mas, creio que a senhora tem suficiente coragem e força de caráter para assumir um risco. Por isso, aconselho que volte para casa e tente sair da Alemanha com seu esposo e sua família. Concentre suas forças, seu coração, sua inteligência, sua vontade nessa ousadia. […] Eu sei que parece não haver esperança de conseguir fugir, mas Deus também existe e protege os que confiam nele e sofrem por causa dele. […] Reflita sobre tudo isso e, antes de dar um passo desesperado irreparável, recorde que tem sempre um refúgio aqui. Tenha confiança! Tenha confiança total em Nosso Senhor e continue seguindo o seu caminho. Ele sabe tudo muito melhor que nós”.
Marie Kahle documentou esses diálogos – que foram bem mais longos e profundos do que colocamos aqui – e disse que o Pe. Kentenich os levou à pequena capela, rezaram juntos e ele os abençoou.
Meses mais tarde, a família conseguiu fugir. Eles partiram em datas diferentes e por países diversos: Bélgica, Holanda, Suíça e Inglaterra, onde construíram, pouco a pouco, uma nova existência. A Sra. Kahle, nos seus relatos e memórias, sempre evocava o diálogo que teve com o Pe. Kentenich, porque ele os acolheu, ofereceu ajuda e os encorajou à ousadia daquele passo.
A unidade dos cristãos e de todas as religiões se dá pelo respeito. Vendo as páginas com a história da família Kahle, desenham-se, ao mesmo tempo, o que há de mais bonito e o que há de mais triste na relação entre as religiões. Apesar de dolorosa, essa história ressalta que a solidariedade e o amor mútuo são maiores que tudo, maiores que a perseguição e a incompreensão. Em momento algum a Sra. Kahle demonstra arrependimento por ter ajudado uma judia. Ao mesmo tempo, o Pe. Kentenich (que já era acompanhado de perto pelas autoridades nazistas) assume um risco muito grande ao recebê-la – e ele não se omite.
Algumas vezes nós corremos o risco de fazer pré-julgamentos sobre determinadas crenças e religiões. A Semana de Oração pela unidade é uma súplica para cada um de nós, movidos pelo Espírito Santo, saber ouvir e conhecer a realidade dos outros credos, especialmente entre os próprios cristãos. O Pe. Kentenich soube se relacionar muito bem com irmãos de outras religiões, sem impor sua fé pessoal a eles – vale a pena conhecer mais sobre isso.
O Santuário – é interessante perceber na história acima – não é apenas um refúgio de paz e de tranquilidade. Ele é muito mais que isso. “O lugar Schoenstatt não se reduzia a um refúgio tranquilo para almas piedosas, uma ‘ilha’ intocada pelos conflitos e confusões” [1]. Como vimos com a família Kahle, os desafios e dores do povo, seja de qual religião for, chegam até ele. Do Santuário partem pessoas transformadas, corajosas, para enfrentar as dificuldades do tempo e ser um sinal de luz na escuridão.
“Nosso Santuário, como qualquer outro santuário cristão, é um lugar de Aliança e de encontro com Cristo e com Deus. É também um lugar onde os homens – como fruto desse encontro – são transformados, por sua vez, em santuários vivos. […] Cremos que Deus escolheu o nosso Santuário como oficina especial de educação de homens de mentalidade orgânica e com atitude disponível, que Ele necessita em nosso tempo para salvar o curso da história” [2].
[1] SCHLICKMANN, Dorothea M. José Kentenich – Uma vida à beira do vulcão. Sociedade Mãe e Rainha, 1ª edição, 2020.
[2] MORANDÉ, Pe. Hernán Alessandri. O que significa o Santuário de Schoenstatt? Editora Palloti, 2ª edição. O Santuário de Schoenstatt é um Santuário com uma missão muito especial.