Conheça o terceiro grau de aprofundamento na Aliança de Amor
Certa vez, um menino pequeno ficou doente e precisava ser operado. Seria um processo delicado, mas era a única forma de garantir que ele não carregasse sequelas sérias ao longo da vida. Seu pai, um médico conhecido e respeitado, era a pessoa mais indicada para conduzir a cirurgia. O pai diz à criança: “Meu filho, você precisa ser operado”. O menino, que confia totalmente em seu pai, responde então: “Se é isso o que o senhor acha, papai, então deve ser necessário. Sei que vai fazer o melhor para cuidar de mim”. Assim começa o processo cirúrgico. Como era um período ainda sem muitos recursos, logo a anestesia não dá conta de aliviar as dores do menino. Ele geme, sofre e se remexe sobre a mesa de operação. Apesar de tudo, no meio de todas as dores, o filho tem uma certeza: “Meu pai me ama, ele está cuidando de mim!”.
Essa historinha é contada pelo Pe. José Kentenich para falar sobre o mais alto grau da filialidade: aquele no qual se reconhece em tudo, inclusive na dor, o amor de Deus (e se responde a esse amor). O filho heroico é aquele que conhece e confia no Pai Eterno e sabe que o Pai somente permite dores e sofrimentos para um bem maior. Jesus contou uma historinha parecida com essa, você se lembra qual é? O agricultor que poda a videira (Jo 15, 1-11).
Todas as pessoas do mundo – você, seus amigos, vizinhos… – vão enfrentar sofrimentos e dores. Não há como fugir disso. A grande questão que diferencia os filhos “de ferro”[1] dos filhos heroicos, diante desses desafios, é a ATITUDE: qual é nossa atitude perante a dor? Desespero e queixas, ou a confiança da entrega total? Seríamos capazes de confiar tanto, a ponto de pedir a cruz em nossa vida?
Essa reflexão abre as portas para conhecermos melhor um grau mais elevado da Aliança de Amor, chamado de inscriptio.
Como assim, um novo grau?
Como se sabe, Schoenstatt nasceu de uma Aliança de Amor com Maria e esta aliança passou por um processo de amadurecimento ao longo dos anos. A primeira etapa de seu desenvolvimento é chamada “Carta Branca” (leia mais aqui).
Com o tempo, a fidelidade e o cumprimento das exigências da Aliança levaram os membros do Movimento a avançarem para uma nova etapa, chamada inscriptio. No dia 18 de outubro de 1944, os representantes de todos os Ramos e Comunidades da Obra, como totalidade, fazem o ato da inscriptio, como fruto de seu amadurecimento espiritual na Aliança de Amor.
O que entendemos por ato da inscriptio?
O Pe. José Kentenich utilizou a palavra inscriptio (inscrição) pela primeira vez no ano de 1941, em uma palestra dada às Irmãs de Maria. Inscriptio indica um crescimento na Aliança de Amor segundo o qual não só se aceita a cruz, mas, por amor, se solicita a cruz, na medida em que ela já esteja no plano divino.
Pe. Kentenich empregou esse termo no sentido dado por Santo Agostinho, segundo ele explica:
“Assim entendemos como o apóstolo Paulo descreve também o amor como uma força unificadora e assemelhadora. Santo Agostinho define o amor como inscriptio cordis in cor (inscrição de um coração em outro coração). Trata-se de uma definição psicológica brilhante. O amor não é justaposição das almas, mas fusão.
É a descrição do que expressa a liturgia: per ipsum, cum ipso et in ipso (por ele, com ele e nele). A liturgia pós-conciliar substituiu essas palavras pelas seguintes: “por Cristo, com Cristo e em Cristo”. Por isso, podemos traduzir a expressão inscriptio com outra palavra: é uma fusão de corações e não só de vontades. Assim devemos interpretar a palavra, segundo Santo Agostinho”.
O Pe. Kentenich conta: “Quando usei essa palavra, pela primeira vez, junto às Irmãs, elas deram-lhe o seguinte conteúdo: Inscriptio perfeita, perpétua e mútua. Isso significa, na linguagem da Família, que a expressão inscriptio possui o sentido de um amor perfeito, isto é, o mais perfeito possível. O que o chamamos de inscriptio é a expressão da mútua Aliança de Amor. Por isso, dizemos: Inscriptio mutua cordis in cor; Inscriptio perfecta cordis in cor; Inscriptio perpétua cordis in cor”.
O conceito inscriptio, para nós, encerra o grau mais elevado do amor, salienta o Pe. Kentenich. Significa, portanto, o mesmo que significa para os franciscanos o amor à cruz. Os jesuítas, em sua ascese, falam do terceiro grau da humildade. Pressupõem-se que todo jesuíta aspire ao terceiro grau da humildade e, à luz dele, seja cultivada a obediência… O que é para os jesuítas o terceiro grau da humildade, para nós é inscriptio. A espiritualidade beneditina se expressa na mesma linha, com a expressão entrega total. Mais uma vez: o que é para o beneditino entrega total, nós denominamos de Inscriptio.
O ato da inscriptio expressa a nossa decisão de aceitar e realizar a vontade e os desejos de Deus, previstos no seu plano de amor pessoal para conosco, pois sabemos que, também pelas cruzes, Deus sempre quer o melhor para nós. Assim, ajudamos Jesus a “carregar a cruz” e colaboramos na redenção do mundo.
É importante perceber que pela inscriptio não pedimos a Deus que “crie ou invente” novos tipos de sofrimento para nós. A ideia central, no caso dessa consagração, é nossa atitude diante daquelas dores que já estão no plano do Pai e que vamos sofrer de uma forma ou de outra. Como já dissemos: o que muda, com essa consagração, é nossa atitude – eu sei que o Pai previu essa dor para mim, visto que ela me fará um bem maior, então eu peço que ele me envie, pois a recebo com alegria.
A nível de comparação com a Carta Branca, podemos perceber a diferença: na Carta Branca nós aceitamos a dor e o sofrimento com alegria; na inscriptio nós pedimos essa dor, pois sabemos que ela está em conformidade com a vontade divina. O Pe. Kentenich salienta: “A conformidade com a vontade de Deus (Carta Branca) diz um sim à cruz e ao sofrimento. O amor à cruz (inscriptio) pede a cruz e o sofrimento. É este um grau elevado do amor? Sem dúvida!”.
A inscriptio está expressa, no Rumo ao Céu, na oração: “Eu te peço toda a Cruz” (estrofes 393-94):
Pai, eu te peço toda a cruz e sofrimento que preparaste para mim (393) e Liberta-me da vontade própria doentia, que eu satisfaça teus mais leves desejos…(394).
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[1] Expressão usada para indicar os filhos que se afastam de Deus. Pe. Kentenich usa como imagem a figura dos filhos de ferro, de prata e de ouro: os filhos de ferro estão voltados para si próprios e para o mundo; os filhos de prata colocam em primeiro plano o próprio eu; os filhos de ouro estão inteiramente voltados para o Pai.